Corrida é tédio?
Num encontro no fim de julho com a fisioterapeuta Raquel Castanharo, ela disse que deveria ser "um tédio" ter de correr mais de 21 km, razão pela qual jamais tentou participar de uma maratona.
Não que um corredor regular e disciplinado, useiro e vezeiro da meia, tenha obrigatoriamente de participar desse fetiche dos fetiches que é a maratona. Mas é justamente por ter esse caráter afetivo – ou perverso, digno de um filme do David Cronenberg— que a prova de 42 km é tão desejada.
Talvez Raquel não tenha declinado suas razões mais verdadeiras. Falávamos para algumas muitas dezenas de pessoas que nos ouviam com espantosa sofreguidão como parte da programação de conversas da mara de inverno de São Paulo.
Era importante oferecer ciência, como ela ofereceu, mas também um pouco de entretenimento, e esse tema não se presta a muitas generalizações.
Como tantas outras pessoas, Raquel costuma correr ouvindo música, e quem sabe ainda não tenha experimentado uma sensação, para mim, enormemente prazerosa, que é não ter qualquer outro estímulo durante o cascalho senão o próprio… cascalho.
Tirante o tempo do sono, já somos bombardeados por estímulos diversos. Se passamos 16 horas por dia em vigília, os 57.600 segundos dessas 16 horas são dominados quase inteiramente por distrações para a mente, incluídas aí as preocupações essenciais de trabalho e sobrevivência, além das troçentas idas a aplicativos, redes sociais e sites. Que tempo sobra para não pensar em nada ou, para usar o termo técnico, meditar?
É disso que se trata quando a gente corre. Pensar em nada é coisa na verdade para os muito gurus, mas é possível ter momentos próximos de algum esvaziamento da mente no cascalho. (Fazendo ioga também, mas dada à lentidão das minhas práticas mais recentes, desconfio que ando dormindo rapidamente ao relaxar.)
Não pense, portanto, que ao correr você viverá um momento "eureka". Diferentemente do que se imagina, nem ideias modestas, nada revolucionárias, brotam do cascalho. Mais comum é sentir uma certa revolta silenciosa, que pode ou não servir para começar a desopilar o fígado. A fita é muito comum em período eleitoral.
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Já corri com fones de ouvido, e tenho, confesso, dificuldades para me concentrar na música. Pode parecer contraintuitivo, mas ouvir música exige um esforço consciente, voluntário. Depois que a notamos, a música logo começa a desaparecer. E isso mesmo com Strokes, João Donato, Daft Punk ou Elgar na playlist.
Me parece que a música tem na corrida uma função mais protetiva, no nível da superstição, da religião. Um sujeito uma vez corria no parque Villa-Lobos ouvindo a CBN paulistana. Ao passar por ele consegui ouvir o boletim de trânsito, que não me foi, creio, de grande valia.
Mas ouvir aquilo deveria funcionar para o comparsa como a narração de futebol na hora de lavar a louça. Há gente de fato que vê fardo, não prazer, na corrida.
Raquel talvez não se imagine fazendo uma imersão vipassana, aquele retiro de sete ou dez dias de silêncio em que também é vedado ler livro, jornal, lista telefônica. Celular, então...
Já falei disso aqui, mas uma maneira muito interessante de fazer o tempo passar durante a corrida é prestar atenção no que acontece minuto a minuto para depois tentar registrar isso em ordem estrita, cronológica.
Espeto: a lança é inventariar as mudanças de ambientes externos e, muito mais, o fluxo de pensamentos. É o que eu chamo de corrida à Abramovic, em homenagem à famosa performer sérvia Marina Abramovic.
Estou me devendo um novo rolé dessa excruciante modalidade. No 15 km de ontem, o último terço foi dedicado a algo muito menos abstrato: tentar não ser atropelado.
Acho que os hábitos civilizatórios do paulistano ao volante regrediram algumas eras, e as faixas de pedestres deixaram de ter, estranhamente, sua função original.
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