Contra a tentação de esquecer, os últimos anos pedem memória e justiça

Mas convém que essa constatação não nos afaste do fundamental: da percepção cada vez mais clara da severidade de tudo o que se passou. Bolsonaro não foi um governante atroz pelo que teve de risível, por seu amadorismo revelado de tantas formas, mas sim e sobretudo por aquilo que fez com propriedade, pelo profissionalismo de sua violência, de sua intolerância, de seu fanatismo, e pela fartura de males que infligiu sobre o país. Bolsonaro fraudou, mas além de fraudar corrompeu, e além de corromper conspurcou, e além de conspurcar agrediu, e além de agredir matou — matou e mandou matar e deixou morrer de inúmeras maneiras, que ainda levaremos anos para decifrar.

No esforço de decifração desse passado recente, de seus arbítrios e atrocidades, um trabalho importante acaba de vir à tona. Há poucos dias, a organização internacional Repórteres sem Fronteiras publicou um relatório sobre o funcionamento das redes de ódio no Brasil, revelando que por aqui a violência virtual nada teve de desordenado ou de casual. Pelo contrário, o levantamento exaustivo comprova o que todos suspeitávamos: que os ataques virulentos contra jornalistas e outras figuras eram oficiais e centralizados, coordenados por líderes e influenciadores bolsonaristas, com a evidente intenção de silenciar a imprensa e intimidar opositores — para continuar a propagar as mentiras que enganavam até a eles próprios.

O estudo focou nos três meses que antecederam as últimas eleições e trouxe dados assustadores: foram mais de três milhões de mensagens com afrontas e ameaças, com um enorme alcance alimentado por uma ampla rede de prováveis robôs. Durante esses meses, a cada três segundos um jornalista foi agredido nas redes sociais, o que contribuiu a fazer de 2022 o ano mais violento do século para a imprensa na América Latina. Os principais alvos foram as mulheres — também aí nenhuma surpresa, dada a misoginia escancarada do presidente.

De minha parte, ler o relatório foi retornar aos dias surreais em que fui vítima dessa violência, os dias avassaladores em que o bolsonarismo me escolheu como um de seus alvos. É fácil deixá-los para trás, tão destoantes que foram dos meus dias comuns. É fácil não dar importância aos fatos novos que surgiram sobre aquele tempo: que parte dos ataques que sofri veio de dentro do Palácio do Planalto, direto do espaço que recebeu o nome justo de Gabinete do Ódio. Sobrevivi, recebi um apoio valioso e cálido, fui esquecido pelos crápulas: é confortável me distrair e também esquecer, e viver dias mais líricos e leves.

Há, no entanto, algo a aprender com o passado, com outros traumas que se inscreveram na história nacional. Distrair-se e esquecer é gesto compreensível, é parte de um impulso vital, ajuda a recuperar a sanidade que nos é tão cara. Mas, contra uma violência oficial e estruturada, um arbítrio que corroeu por dentro as bases do país e gerou vítimas por toda parte, ignorar e deixar para trás nunca há de bastar. O processo que agora se inicia tem que se fazer também ele oficial e estruturado, abrangente e sistemático. Não nos distraiamos demais, é hora de realizar um vasto movimento de justiça e de memória.

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