Celular: Até quando deixaremos as crianças reféns de um aparelho danoso?

Em múltiplas disciplinas, perspectivas, olhares, a ciência tem provado que os smartphones causam uma dependência grave, equivalente à do consumo de álcool e drogas. Em crianças e adolescentes, tem se verificado amplamente um prejuízo real em seu desenvolvimento cognitivo e em seu rendimento escolar. Em âmbito neurológico, já se veem com clareza as sequelas corticais provocadas pelo excesso de telas. Em âmbito psicológico, já se tornam explícitos o agravamento e a proliferação dos quadros de depressão e ansiedade.

E, ainda assim, trazer tudo isso à tona não basta, ou não tem bastado. Por toda parte continuamos a ver adolescentes e crianças valendo-se livremente de celulares, dissipando seu tempo em telas luminosas. Estarão satisfazendo assim um desejo legítimo, estarão alcançando prazer de verdade, ou suprindo com isso apenas a nossa vontade de distraí-los ou entretê-los, talvez de silenciá-los? Estarão aderindo a esse vício que é nosso, que está em tantos de nós, sendo essa a herança cultural que lhes deixamos? Nada tem bastado, nada tem gerado nenhuma saciedade.

Talvez o óbvio precise ser dito, e sempre repetido. O tempo livre de brincar, o contato com a natureza, a leitura lenta e calma, a vivência cotidiana das relações familiares, o encontro real com o outro, todas essas experiências cruciais para o pleno desenvolvimento infantil estão sob ameaça. Têm perdido enorme espaço para o rumor constante das telas, com seu apelo fácil. E nada fazemos, deixamos que assim sigam os nossos filhos, as crianças ao redor — também nós estamos reféns de nossas telas.

A comparação com o cigarro pode ser inexata, mas ajuda a pensar. A sociedade levou décadas para aprender o risco que esse hábito representava. Teve que se valer de todo seu potencial científico, teve que enfrentar uma indústria poderosa. Hoje o mundo sabe, e ainda assim o adulto que sabe pode escolher fumar, respeita-se a sua liberdade. Mas por que colocaríamos um cigarro na mão de uma criança de dez ou doze anos, com toda tranquilidade? E, se o fizéssemos, seria de fato da criança a escolha de fumar?

Cabe pensar, então, o que fazer quando ganhamos consciência do risco que existe em dar um celular a uma criança, a um adolescente. Continuamos a estimular essa prática contra toda recomendação médica? Ignoramos tudo o que se sabe apenas porque o hábito já se espalhou demais, e não queremos ver a criança excluída de um costume geral? Será mais fácil dizer sim depois para o antidepressivo prescrito a um filho, do que dizer não agora ao pedido de um celular?

O risco está escancarado. O sofrimento psíquico geral já é evidente. E sobre quem recai a responsabilidade de controlar o que agora não tem nenhum controle? Cabe ao Estado assumir seu papel, legislar a respeito e informar a população sobre tal gravidade. Cabe aos agentes de saúde orientar e alertar seus pacientes em toda oportunidade. Cabe às plataformas de redes sociais reconhecer os danos que têm causado e alterar suas práticas. Cabe às escolas debater a regulação ética de seu uso em sala de aula. Cabe a cada família dizer não, e a toda a comunidade fazer esse não ecoar.

Às crianças e aos adolescentes, não cabe mais que o direito a uma vida saudável. Uma vida de reflexões e contornos que lhes propiciem um desenvolvimento pleno, que os convertam em cidadãos críticos e competentes, aí sim, para fazer as suas livres escolhas.

*Hoje abro espaço para outra voz da família, é minha irmã quem escreve a coluna. Florencia Fuks é uma pediatra de extrema consistência, sempre atenta às sinuosidades do discurso infantil, e comprometida com a complexidade do pensamento que dedicamos às crianças. É raro um olhar seu que não se mostre cheio de nuances e alternativas. Assim, quando a ouvi falar com tal contundência sobre um assunto importantíssimo, sobre a presença excessiva do celular que tem abalado crianças e afligido uma infinidade de famílias, achei que valia convocá-la para levar a todos esse apelo urgente. Eis o que ela e tantos outros especialistas têm tido para dizer a respeito. (Julián Fuks)

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