Dezenas de igrejas e capelas se convertem em teatros na Cidade dos Papas

Palácio dos Papas, em Avignon, na França - UCG/UCG/Universal Images Group via G

Márcia Bechara

Da RFI, em Avignon

09/07/2023 09h24

Até o dia 24 de julho de 2023, as igrejas, capelas e locais de culto da cidadela medieval de Avignon rezam um outro tipo de missa, às vezes estranhamente colorida, musical e até - deus nos livre! - bastante ousada, com temas que variam de textos clássicos do repertório francês, da lavra de autores como Molière e Racine, até títulos mais ousados como o espetáculo programado neste domingo na Capela do Verbo Encantando às 21h20: "Eu, Dispositivo Vênus" fala abertamente de sexualidade feminina, com um cartaz que traz uma mulher com seios nus, numa lânguida contraluz azul, exposto no alto de um antigo lugar de culto medieval do século 17. Veja bem.

Visitada pela reportagem da RFI Brasil neste domingo (9), a Capela do Verbo Encantado, é, aliás, um desses locais que misturam sem nenhum tipo de complexo moralista os ritos religiosos e teatrais, como preconizado desde a Grécia Antiga, trazendo uma programação que começa às 10h da manhã (sim, da manhã) e só termina ao cair da luz, depois das 22h, neste verão francês cujas temperaturas chegam a 40°C. A capela é o único vestígio do antigo convento das Dames du Verbe Incarné (Senhoras do Verbo Encarnado), fundado em 1639 pela venerável religiosa Jeanne Chézard de Matel.

Mas as artes cênicas e as manifestações religiosas nem sempre estiveram brigadas, muito pelo contrário. Para quem não sabe, a religião se encontra na origem mesma do teatro, arte que nasceu, segundo registros de Aristoteles, nos séculos VI e V a.C., durante as celebrações dedicadas a Dionísio, o deus do vinho, das artes e das festividades. As origens do teatro se encontrariam, portanto, nos chamados "ditirambos", os hinos religiosos dedicados aos deuses ou heróis, num rito cheio de procissões, música e dança.

Quando não está rezando missa na Capela do Oratório, o irmão Samuel estaciona seu scooter em frente à capela para se dedicar ao seu passatempo favorito, o teatro, como confessou recentemente à imprensa francesa. Outra cena teatral emblemática dessa verdadeira "conversão" dos lugares de culto durante o Festival de Avignon é o Jardin da Virgem no Liceu Saint-Joseph, uma cena disputada pelos artistas transgressores, como o ✅enfant terrible do teatro francês, Julien Gosselin, que apresenta, nesta edição de 2023 do evento, o seu "Extinction", espécie de ópera techno-subversiva de cinco horas de duração, encenada no sacro local.

Avignon, no sul da França, mudou completamente em março de 1309, quando o todo-poderoso papa Clemente V entrou solenemente em Avignon, numa espécie de invasão santa. Ninguém poderia imaginar que esse dia mudaria o destino da cidade, transformando-a na capital do mundo cristão, e ainda hoje universalmente conhecida por sua epígrafe mais famosa, a "Cidade dos Papas".

Na esteira da construção do Palácio dos Papas (na foto acima), que se tornou a partir de 1947, com Jean Vilar, a cena principal do Festival de Avignon, a presença papal deu origem a uma intensa dinâmica de transformação urbana e à construção de edifícios suntuosos. Os artistas e mestres construtores mais prestigiados da época vieram dos reinos da França e da Itália, difundindo o estilo gótico e as artes decorativas da época.

As ordens monásticas - beneditinos, franciscanos, agostinianos, dominicanos, carmelitas e celestinos - rapidamente estenderam suas propriedades para além das muralhas originais da cidade, o que levou à construção de um novo muro para protegê-las. Em menos de um século, a cidade foi renovada e orientada exclusivamente para a corte papal e os serviços religiosos.

Roma, no final do século 14, desacelerou o processo, mas a transformação do centro histórico continuou, marcada pela construção de grandes complexos monumentais ligados a instituições religiosas: o hospital Sainte-Marthe, o colégio e noviciado jesuíta e o seminário Saint-Charles.

O estouro da Revolução Francesa, no entanto, fez com que Avignon sofresse uma parada repentina e definitiva, pois todo o patrimônio religioso foi confiscado então pelos revolucionários e se tornou parte do Estado francês. Os edifícios religiosos, fossem ou não destinados ao uso religioso, foram vendidos em leilão e seu destino foi mais ou menos trágico.

Enquanto as igrejas paroquiais retornaram a seu propósito original, o próprio Palácio dos Papas se ornou um quartel militar até o início do século 20. O prestigioso convento dominicano foi transformado em uma oficina de fundição e depois completamente destruído. O convento dos celestinos tornou-se uma penitenciária militar, depois um quartel e, atualmente, um centro administrativo. Os carmelitas, agostinianos e franciscanos desapareceram no tecido urbano. A Capela de Santa Catarina e a dos Penitentes Violetas abrigaram uma garagem de reparação de carros até muito recentemente, e a Capela Notre-Dame des Miracles (Nossa Senhora dos Milagres), uma fábrica de munições.

Mas talvez a programação de peças teatrais em lugares de culto, não apenas em Avignon mas em toda a França, talvez não seja assim uma ideia tão ruim. Segundo especialistas do patrimônio que defendem no Senado francês a "conversão" dos lugares de culto em locais de cultura, de 2.500 a 5.000 igrejas estão ameaçadas de destruição até 2030 "se nada for feito".

Exposições, concertos, teatro, educação, turismo, obras de caridade... "Abrir nossas igrejas está se tornando uma questão de urgência", afirmou o senador Pierre Ouzoulias (Partido Comunista) à revista ✅L'Obs, autor de um relatório sobre o futuro do patrimônio religioso na França.

Talvez seja o momento enfim em que o teatro retorne ao rito, e o rito ao teatro, num ecossistema de preservação mútua, como queriam os antigos.

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