O tempo de Ernaux: este tecido escrito Ensaio Palavra-Imagem

Esta é nossa quarta edição do Ensaio Palvra-Imagem com o Clube do Livro de Literatura e Psicanálise, organizado pela psicanalista e crítica literária Fabiane Secches. Os livros escolhidos para leitura conjunta em abril foram "O jovem" e "A vergonha", ambos de Annie Ernaux, publicado pela Editora Fósforo. Cada livro da escritora é como um capítulo de seu projeto literário e se relacionam entre si. A convidada do mês foi a escritora e pesquisadora Renata Belmonte. Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo, é autora do romance "Mundos de uma noite só" (editora Faria e Silva), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, entre outros textos, como contos e ensaios. Para a imagem, os retratos da sul-africana Marlene Dumas. Por explorar o retrato por mais de 40 anos, trás retratos de mortos, de vivos, nus em pé, grupos, figuras de casais, recém-nascidos e bebês, mulheres chorando e mulheres grávidas. Focado na figura humana, seu trabalho explora temas — de raça e gênero, sensualidade e violência, realidades pessoais e identidades públicas — que estão constantemente em fluxo, assim como a obra de Ernaux e suas transformações de vida e morte.

Uma mulher caminha pela praia. Há uma expressão indefinível em seu rosto, talvez a prévia de um sorriso que a fotografia, quase sempre a mais fortuita das artes, recusou-se a eternizar. Seus cabelos dançam com o vento e supomos que ela está feliz. Supomos. Porque roupas brancas indicam leveza, mas também enganam. E imagens não são necessariamente registros de realidade. O que cabe dentro de alguém é da ordem do mistério infinito. No retrato, ela está sozinha. Mas, sim, sabemos que alguém a captura, naquele momento, em vida. Movimento, coisa da mesma ordem do tempo. Juventude: contingência ou estado de espírito?

Num retrato, um casal de idosos manifesta certa alegria. Velhice: sinônimo de breve despedida? Ambos estão vestidos de modo formal, sustentam aquela elegância ingênua de quem busca melhor destino. Mas esta escada pode ser considerada caminho? Pertencimento, lugar de origem impossível. Retornar aos seus para também voltar em si? E quando as trilhas são feitas de não ditos? Especialmente daquele afeto ligado à queda de uma fantasia rígida? Do que são capazes, afinal, os pais de Annie, esses senhores tão distintos? Um episódio lamentável do passado precisa ser considerado sentença, vaticínio? Uma menina de onze anos envelhece se perguntando isso.

Annie Ernaux, filha da classe operária, além da criança acima descrita, é também escritora multifacetada, mãe de dois meninos e abortista. Francesa, nascida em 1940, na Normandia, ela jamais temeu colocar sua existência em escrutínio. Etnóloga de si, com sua escrita cortante, seca, plana, alcançou feitos inimagináveis. Considerada pela britânica Margaret Drabble como herdeira de Beauvoir no papel de cronista de uma geração, Ernaux parece interessada em mergulhar na sua experiência privada como forma também de mapear o que pode se tornar alguém que habita um corpo feminino. De estilo inconfundível, ela recusa, então, estereótipos de gênero, consentindo ambiguidades e buscando subverter determinismos sociais. Assim, a partir do seu olhar forense para as pessoas e fatos do seu passado, ela constrói um campo de identificações em que outras mulheres podem se reconhecer, assim como perceber suas diferenças em relação aos ideais de feminilidade produzidos a partir do suposto saber masculino.

É partindo de um olhar radical para sua própria intimidade que em O jovem, livro aqui publicado pela editora Fósforo, nós acompanhamos Annie Ernaux rememorar o romance que teve com um rapaz mais novo. Também oriundo de uma classe materialmente desfavorecida, durante o período em que estão envolvidos ele a faz revisitar suas bases sociais, ao mesmo tempo em que isso a obriga a constatar que já não pertence mais ao lugar de onde veio. Annie Ernaux, que vamos conhecendo melhor a cada livro seu publicado, apesar de sua origem proletária, sempre desejou muito para si, ao contrário deste jovem que não somos convidados a conhecer o nome. Buscando se distanciar do lamento de Rimbaud, que se declarou parte de uma classe inferior por toda a eternidade, os olhos de Ernaux sempre brilharam com a perspectiva de novos mundos. Inclusive, na sua relação com este moço, as posições de opressor e dominado parecem, em determinados momentos, invertidas. Sem pudores, ela nos confessa uma certa crueldade ao instrumentalizar seu namorado e, em determinados momentos, se autorizar a ser grosseira com ele por conta de sua dependência econômica ou pela sua pouca idade. Neste período, Ernaux já se sabe parte de um lugar socialmente superior e gosta de ver, em sua própria indiferença aos comportamentos tidos por ela como "broncos" do rapaz, o reflexo do sucesso que ela alcançou.

É também na vida adulta, quando já mais competente com as palavras, que ela faz outro movimento audacioso: rompe com um certo silenciamento que a atormentou, durante anos, e escrutina um episódio de violência que testemunhou na infância. Ao ser capaz de narrar as circunstâncias do dia em que seu pai atentou contra a vida de sua mãe, Ernaux se aproxima do mal-estar brutal que a dominou por grande parte de sua vida. E, assim, nasce o seu livro A vergonha (também publicado pela Fósforo), em que ela estuda os motivos e situações que a colocavam nesta espécie de limbo de si. Ao recusar a ficção em sua literatura, Annie quebra, então, com qualquer pacto que havia feito com a ideia de uma "escrita bonita". Desejando ser lida (ou talvez amada) in natura, ela se apresenta nua ao seu leitor, ou seja, livre de artifícios literários, quase como se esperasse dele um acolhimento radical para sua dor. Não, não me parece gratuito que, no livro, ela nos revele que contava tal tentativa de homicídio para os homens com quem se relacionava como um modo de se dizer apaixonada por eles. Afinal, é na vergonha profunda que sente (este afeto muito mais ligado ao verbo ser do que ao fazer) que ela se reconhece. A vergonha, este sentimento sem tempo porque seu relógio é de propriedade do outro. Tomar posse da sua narrativa, escancarar sua vulnerabilidade fundante, foi a forma que Ernaux encontrou para encontrar saída daquilo que tanto a aprisionou.

No seu documentário Santiago, João Moreira Salles conta que, na infância, encontrou o mordomo de sua casa vestido de fraque, ao piano, sozinho. E que quando lhe perguntou por que ele estava trajado deste jeito, escutou-o responder: É Beethoven, meu filho. Não sei se a vida tem consideração com os que ousam desafiar lugares estabelecidos e convenções sem sentido. Mas, enquanto termino este texto, penso no Prêmio Nobel de Literatura que, em 2022, Annie Ernaux ganhou. Sinto-me, então, muito honrada por ter sido convidada a escrever aqui sobre esta escritora incrível. E planejo, portanto, logo em seguida, em sua honra, colocar o meu melhor vestido.

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