Dolarizar é remédio amargo que deve ser evitado

Javier Milei, o polêmico libertário, foi democraticamente eleito presidente da Argentina. Na sua plataforma de campanha, defendeu –entre otras cositas más– fechar o Banco Central para derrotar a inflação galopante. Se vai levar a cabo essa e outras propostas apresentadas nos últimos meses, é difícil saber. O que não nos impede, obviamente, de discuti-las no plano das ideias.

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Antes, um esclarecimento. Há uma grande diferença entre o modo de pensar dito liberal e o tal pensamento libertário de Milei. O pensamento liberal moderno é na verdade menos um pensamento do que um método de análise. Não há um conjunto estabelecido de verdades. Já os libertários são bem mais doutrinários, menos científicos. "Todo imposto é roubo", dizem eles. Ou "os mercados são soberanos". Essas são afirmações ideológicas, não técnicas.

Milei está correto ao afirmar que não existe inflação galopante sem um Banco Central que aceita monetizar os gastos excessivos do governo. A questão é: como resolver esse problema? A dolarização é uma solução ultraeficiente para debelar a inflação pelo simples motivo de que, de um momento para o outro, o Banco Central deixa de vir em socorro de um governo excessivamente gastador. É como amputar um membro doente. O problema imediato desaparece.

Nos episódios de hiperinflação na Europa dos pós-guerras e na América Latina dos anos 1980, essa foi a arma empregada para conter o crescimento desenfreado de todos os preços. E funcionou. Mas é uma solução, na maioria dos casos, temporária e com efeitos colaterais bem conhecidos, que só deve ser empregada em caso de absoluta necessidade. É a situação da Argentina? Para muitos economistas não libertários, a resposta é um "infelizmente, sim". Desde que abandonou o sistema de câmbio de fixo na virada do século, a Argentina luta contra o problema da inflação, sem sucesso. Mais: antes da implementação do câmbio fixo no início dos anos 1990, a Argentina também lutou décadas por estabilidade monetária, igualmente com pouco sucesso.

Quando se dolariza, na prática o que ocorre é que a política monetária da Argentina passa a ser a política monetária dos Estados Unidos. Mas isso tem um lado péssimo, pois o presidente do Banco Central dos Estados Unidos não leva em conta o estado da economia argentina em suas decisões. Se a economia norte-americana enfraquece, o Federal Reserve acaba cortando os juros. – e, se nesse momento a economia argentina estiver aquecida, isso vai prejudicá-la, já que ela precisa justamente do remédio oposto. O mesmo vale para quando a economia norte-americana estiver aquecida e a argentina não. Nesse cenário, Banco Central dos Estados Unidos vai subir juro, quando o melhor para a economia argentina seria justo o oposto. Em resumo, o país perde um instrumento para combater os ciclos econômicos, o que aumenta a volatilidade da sua economia. Mas exatamente neste momento, uma Argentina que não aguenta mais viver sob hiperinflação poderá considerar que todo risco para debelá-la vale a pena.

Na literatura econômica esse debate é, não por acaso, apelidado de "regras versus discricionariedade". A regra engessa, o que pode ser bom se você não consegue evitar fazer mal a si mesmo. Em casa de diabético, melhor nem entrar doces. De outro lado, para os que conseguem se controlar e evitar excessos, é melhor ter a opção de comer um bombom quando a necessidade de calorias é maior. A flexibilidade (discricionariedade) diminui as oscilações de energia: comeu muito, evita o bombom e queima o que já está no sangue; se está correndo uma maratona, come uns quatro para chegar à reta final! O problema é não conseguir parar de comer alfajores, em todas as refeições, com ou sem maratona.

Dolarizar é um remédio amargo, que deve ser evitado. Mas não a qualquer custo. A ver as próximas cenas da novela argentina.

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