Contas públicas no azul e pobreza: os dois lados do ajuste radical de Milei na Argentina

Na semana passada, a Argentina registrou dois marcos: pela primeira vez em mais de uma década, o Ministério da Economia anunciou que havia um excedente fiscal. Ou seja, arrecadou mais do que se gastou, algo que poucas vezes aconteceu no país sul-americano.

Pouco depois, o prestigiado Observatório da Dívida Social da UCA (Universidade Católica Argentina) divulgou um número que deixou muitos indiferentes: estimou que a pobreza em janeiro ultrapassava os 57%, o pior índice desde a crise de 2001/2002.

Esses dados refletem as duas faces da Argentina do presidente Javier Milei, o economista libertário que assumiu o cargo em dezembro de 2023 prometendo melhorar a economia do país, que há décadas entra e sai da crise, e reduzir a inflação, que hoje é a mais alta do mundo.

Em apenas dois meses Milei conseguiu cumprir a meta de déficit zero, ou seja, deixar de ter as contas no vermelho. E os mercados mostram a sua satisfação.

Os títulos e as ações argentinas estão em alta, o dólar livre (ou "azul") se estabilizou e o chamado "risco país" —índice que mostra a confiança na capacidade de um estado pagar sua dívida— está no seu nível mais baixo dos últimos dois anos, o que pode ser interpretado como um sinal de que a direção macroeconômica está no caminho certo.

Mas o remédio que Milei aplicou para alcançar essas melhorias —um ajustamento sem precedentes— tem consequências graves numa população que já teve seis anos consecutivos de queda dos salários reais, com um salário mínimo que equivale a apenas US$ 160 (cerca de R$ 800), o segundo menor da região, atrás apenas da Venezuela.

Milei ficou famoso durante a campanha por brandir uma motosserra, símbolo de como planejava destruir os gastos públicos, motivo que tem levado o país a um déficit constante (112 dos últimos 122 anos).

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Segundo o economista, as soluções que os diferentes governos têm aplicado até agora - emitindo mais notas ou pedindo dinheiro para cobrir essas despesas - levaram o país a ter uma inflação que ultrapassa os 250% anuais e a ser o principal devedor mundial do FMI (Fundo Monetário Internacional).

Em vez dessas receitas, esse✅ "outsider", que entrou na arena política há menos de três anos, propôs uma solução mais drástica: cortar a origem do problema —os gastos excessivos— para atingir o déficit zero, que definiu como o seu principal objetivo de governo.

E em novembro passado, no segundo turno eleitoral, quase 56% dos argentinos apoiaram a ideia, que supostamente —segundo Milei— iria focar no corte de despesas da "casta", como ele chama a classe política tradicional.

Mas poucos imaginavam quão rápidas e profundas seriam as mudanças que o novo presidente traria. Nem o quanto isso os afetaria diretamente.

No dia em que tomou posse, 10 de dezembro, Milei declarou que seu objetivo era cortar 5 pontos do PIB (Produto Interno Bruto), um ajuste raramente visto na história, não só deste país, mas do mundo.

Ele não havia detalhado que pretendia aplicar esse megacorte em menos de dois meses, algo também inédito.

Para atingir o seu objetivo, não só ligou a famosa motosserra, reduzindo ministérios e secretarias pela metade, paralisando novas obras públicas, cortando subsídios e despesas com publicidade institucional e eliminando transferências discricionárias para as províncias (o que tem gerado uma briga com os governadores desses distritos).

Ele também "ligou o liquidificador", que realmente tem sido sua principal ferramenta de ajuste.

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Ele emitiu um decreto para que este ano seja aplicado o mesmo orçamento que em 2023, fazendo com que as rubricas orçamentárias permanecessem abaixo da taxa de inflação (o que, na verdade, as reduziu fortemente).

Mas a sua medida mais contundente foi retirar metade do valor do peso face ao dólar, o que fez com que o poder de compra dos salários e das pensões entrasse em colapso —ou fossem passados por um "liquidificador".

Segundo o economista Martín Polo, da consultoria Cohen Aliados Financieros, as medidas de Milei reduziram em mais de 38% as aposentadorias e pensões, principal despesa do estado.

Os salários públicos também foram reduzidos em 27%, os subsídios econômicos (principalmente para energia) em 64% e as obras públicas em 86%. Tudo de uma vez.

Além disso, a forte desvalorização acelerou ainda mais a inflação, que dobrou entre novembro e dezembro, atingindo 25,5% mensais no final do ano.

O resultado dessas medidas foi tão impressionante quanto dramático.

Por um lado, o governo comemora ter alcançado em tempo recorde o seu objetivo de déficit zero, destacando que é a primeira vez desde 2012 que o setor público não reporta perdas.

Pelo contrário, em janeiro o governo teve um excedente —ou superávit— de mais de US$ 580 milhões.

Milei destaca ainda que a inflação, que parecia entrar num processo irreversível de hiperinflação, desacelerou, caindo cinco pontos no primeiro mês do ano (para 20,6%).

A maioria das previsões privadas antecipa que a tendência continuará descendente, com uma inflação que rondará os 15% em fevereiro.

Mas por trás disso, o custo humano dessas melhorias econômicas tem sido enorme.

Segundo o Observatório da Dívida Social, entre dezembro e janeiro a pobreza saltou, passando de 49,5% para 57,4%, valor próximo ao da pior crise que a Argentina viveu até agora, a de 2001/2002, quando houve um valor recorde de 65,5% da população na pobreza.

E, embora a queda da inflação gere expectativas, a dura realidade é que a principal razão pela qual os preços caem é que as pessoas já não têm dinheiro suficiente para gastar.

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