Maria Fernanda Cândido dá vida às crises de A Paixão Segundo G.H.

O filme "A Paixão Segundo G.H." é melhor que o romance no qual se baseia. É com imagens límpidas que o diretor Luiz Fernando Carvalho dá materialidade às opacas abstrações de Clarice Lispector.

Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha

O diretor é fiel à prosa turva e maçante da escritora. Tampouco barateia a trama, inventando falas ou personagens. O que o filme faz é acentuar cenas e temas para que se tornem os nervos da trama.

A "Paixão" do título não diz respeito ao amor romântico exacerbado. Refere-se aos Evangelhos, à via-crúcis do Nazareno, à sua morte inevitável para redimir os pecados da humanidade.

G.H., interpretada por Maria Fernanda Cândido, é uma escultora que vive no topo de um prédio de frente para o mar, no Rio. As duas letras, para alguns estudiosos, abreviariam "gênero humano". G.H. serviria de súmula para a humanidade, a parte que explicaria o todo.

As letras poderiam significar também "growth hormone", o hormônio do crescimento, proveniente da glândula do tamanho de uma ervilha na base do cérebro. A súbita maturação da escultora seria produto de um órgão alheio à consciência e à razão –o coração selvagem da vida.

Por fim, G.H. talvez seja uma alusão sibilina à ordem alfabética: depois do gê vem sempre o agá. Assim, a protagonista estaria submetida, como todos os humanos, aos constrangimentos e automatismos da linguagem. É a linguagem que nos diz, e não o contrário.

Nenhuma explicação convence porque a esfíngica Clarice embute na sua ficção enigmas indecifráveis. É um jeito de espicaçar a imaginação de leitoras, de entreter críticos literários dados a especulações.

O filme conta algumas horas da vida de G.H. Ela está sozinha, toma o café da manhã, faz bolinhas com miolo de pão, devaneia e vai arrumar o quarto da empregada, que se despedira na véspera. Ao contrário da suja desarrumação que esperava, ele está um brinco.

Ela vê que a empregada fizera um desenho na parede. Ao perceber que a mulher tinha vida própria, lembra que ela se chamava Janair (feita por Samira Nancassa, imigrante da Guiné-Bissau sem formação de atriz). Irrita-se, chama-a de rainha africana, estrangeira, inimiga; raspa o desenho.

G.H. topa com uma barata no armário e leva um baita susto. Seguem-se cenas e mais cenas de um embate de gestos tensos entre a mulher fora do prumo e o inseto com asas, mas que se arrasta. O bicho mexe as antenas e vomita uma gosma amarelada. A pessoa grita e ensaia atacá-lo.

O desfecho da dialética de fascínio e repulsa explica a epígrafe do romance, do historiador da arte renascentista Bernard Berenson: "Uma vida plena pode ser aquela que atinja uma identificação tão completa com o não-eu que não haja nenhum eu para morrer". É complicado.

G.H. não tem um chilique, mas uma crise metafísica. A raiz do colapso é ambígua porque sua verborragia não é argumentativa. É um palavrório baço que conflui para as últimas frases da personagem: "A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro".

O que você está lendo é [Maria Fernanda Cândido dá vida às crises de A Paixão Segundo G.H.].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

Wonderful comments

    Login You can publish only after logging in...