Mortes: Médico do Flamengo em fase lendária, tinha quatro empregos

O médico Célio Cotecchia mais de uma vez contou aos filhos, com certo espanto, que um pequeno evento poderia ter mudado o rumo de toda a sua vida. Ele se referia ao início da ditadura militar no Brasil, quando ainda era estudante de medicina.

Cotecchia contava que, em março de 1964, às vésperas do golpe, um general do Exército foi à Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e convocou alunos para que trabalhassem no corpo médico da Força. A participação era obrigatória para os convocados, mas a resposta de seu pai, Carmine Humberto Cotecchia, foi de que ele não serviria ao Exército de maneira alguma.

A desconfiança era de que os profissionais seriam obrigados a assinar laudos médicos com informações falsas, de forma a mascarar assassinatos do regime. Os dois foram ao quartel no dia seguinte, e Carmine não saiu de lá sem que lhe garantissem a retirada do nome do filho da lista.

A insistência do pai o marcou profundamente. Ele contava que teve colegas de faculdade com carreiras prejudicadas pela colaboração com a ditadura.

Outra história que mudou a vida do jovem Cotecchia aconteceu no mesmo ano. Ele era o médico responsável pelo tratamento dos atletas do time de remo do Flamengo, esporte ainda amador apesar de muito popular nos clubes da época.

O time titular de futebol iria a Fortaleza para um jogo da Taça Brasil, equivalente ao Campeonato Brasileiro atual, e o médico do time não poderia viajar. O técnico Flávio Costa pediu então a convocação do "doutor novo". Começou ali uma trajetória de mais de duas décadas como médico do Flamengo.

Cotecchia vivenciou a era que consolidou o rubro-negro como grande time de futebol. Participou da formação de Zico, integrou as delegações vitoriosas do título da Libertadores de 1981 e esteve no Japão no mesmo ano, quando o time conquistou o Mundial de Clubes sobre o Liverpool.

Ele viveu a infância em São Conrado, na zona sul carioca, filho mais novo de uma tradicional família de origem italiana. Tinha duas irmãs mais velhas, Célia e Vera, e a expectativa de que se tornasse bem-sucedido para sustentar o próprio lar.

A indicação ao clube tinha ocorrido pelas mãos de um professor da Uerj, que trabalhava no departamento médico do Vasco. Nos bailes da Tijuca, conheceu Sonia Maria, com quem logo se casou e teve uma filha e dois filhos.

Sua rotina durante boa parte da carreira significava sair de casa às 6h e voltar às 20h. Era um dos principais nomes da medicina esportiva de sua geração e, além do Flamengo, tinha outros três empregos: num hospital municipal, numa clínica particular e como perito da Caixa Econômica Federal.

Certa vez, seu filho Bruno ouviu uma história de um paciente do pai após ter seu sobrenome reconhecido na rua. Era alguém que havia sofrido um acidente grave e contava que todos os médicos disseram que a perna teria de ser amputada. Todos menos Cotecchia, que perguntou se o paciente estava disposto a ficar meses internado para um tratamento experimental. Anos depois, Bruno ouviu o agradecimento do paciente de seu pai.

Piadista e conhecido por ser muito atencioso, adorava passar horas preparando churrasco aos domingos. Só parou de trabalhar depois dos 80 anos, quando veio a pandemia de Covid-19.

Cotecchia morreu na última sexta-feira (12), aos 85 anos. Ele deixa a esposa, três filhos, seis netas e um neto.

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