Até na ex-Iugoslávia guerra civil era vista como ficção

Bons tempos, aqueles, em que as ameaças vinham do espaço –meteoritos, invasões alienígenas, radiações cósmicas.

Ou, para não sermos tão megalômanos, os perigos vinham de uma natureza terrestre sem rosto, sob a forma de tufões, vulcões, terremotos ou pandemias.

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O cinema americano, com uma gula sadomasoquista, sempre gostou de recriar essas destruições com a certeza consoladora de que elas seriam improváveis.

Mas eis que Alex Garland, diretor que se especializou a filmar os nossos medos contemporâneos, resolveu dar carne e osso a uma possibilidade mais real, mais próxima, mais plausível, com seu "Guerra Civil": um conflito nos Estados Unidos entre facções que já não conseguem viver no mesmo território.

O diretor não nomeia essas facções. Prefere mostrar, pelo olhar de quatro jornalistas, as consequências sangrentas de uma guerra entre Washington e os estados rebeldes. Não era a primeira vez. Haverá uma segunda também na realidade?

Profecias não são a minha praia. Mas há certas coisas que até um cego, sem precisar do dom de Tirésias, é capaz de vislumbrar no horizonte.

A primeira evidência é que Donald Trump quer vingança. Não apenas pela derrota de 2023. Por tudo: a derrota, as tribulações judiciais, o ego ridicularizado e ferido.

Não é caso único. O cientista político Ivan Krastev, tempos atrás, explicava que o comportamento é comum a líderes populistas que se sentem injustiçados pelo "deep state", ou seja, por funcionários públicos, burocratas, militares, agentes de segurança, magistrados ou até jornalistas que, segundo esses líderes, operaram na sombra para sabotar o governo.

No leste da Europa, por exemplo, a "limpeza" das segundas oportunidades faz parte dos manuais. Na Hungria, Viktor Orbán, que começou bem como liberal clássico, regressou ao poder em 2010 para se vingar dos socialistas. Ainda lá está, ao leme da sua democracia iliberal.

Na Polônia a mesma coisa: o partido Lei e Justiça, em 2015, também não perdoou os seus adversários quando voltou para ajustar contas.

Por que motivo Donald Trump seria diferente?

Fato: o desejo de vingança não justifica o tipo de guerra civil que Alex Garland apresenta no filme —ataques bombistas, linchamentos, valas comuns. Não aconteceu na Hungria. Não aconteceu na Polônia.

Mas aconteceu na ex-Iugoslávia depois do fim do comunismo, quando as ex-repúblicas cumpriram um calvário conhecido: anocracia, faccionalismo e guerra aberta.

Essa trilogia é apresentada por Barbara F. Walter em "Como as Guerras Civis Começam" (Zahar), livro de 2022 bastante mais perturbador que o filme de Alex Garland. Para a autora, a trilogia pode existir nos Estados Unidos com uma Presidência musculada. As sementes estão todas lá.

Anocracia é um estado intermediário entre democracia e autocracia. Sim, o povo ainda vota; não, o sistema de freios e contrapesos já não funciona como antigamente —o Judiciário foi capturado pelo Executivo, o Legislativo também, as Forças Armadas se encontram divididas em suas lealdades e a segurança da população tem dias.

O faccionalismo vem a seguir. Não confunda com polarização. Sociedades democráticas tendem a ser polarizadas e ninguém morre por causa disso: a defesa vigorosa de propostas antagônicas não é um mal em si. É expressão de liberdade e pluralismo.

O mal acontece quando a polarização extravasa o jogo político pela constituição de facções que se sentem ameaçadas, existencialmente falando, pela existência de outras facções.

Tradicionalmente, Barbara Walter tem razão quando afirma que o faccionalismo que amedrontava os pais fundadores dos Estados Unidos se baseava em diferenças de renda.

Aliás, desde a Antiguidade que assim era: já Aristóteles tinha alertado para o fosso perigoso entre ricos e pobres, preferindo uma "polis" de classes médias.

Hoje, as diferenças étnicas (brancos vs. negros), religiosas (fundamentalistas vs. secularistas) e até geográficas (urbanos vs. rurais) são muitíssimo mais preponderantes.

E hostis: relembra a autora que, em 2017, o número de democratas e republicanos que admitiam o uso de violência para lidar com os adversários não passava dos 8%.

Nos últimos anos, os números subiram para 33% (democratas) e 36% (republicanos). Não admira que 15% dos primeiros e 20% dos segundos desejem a eliminação física de quem está do outro lado.

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