O silêncio após o mãe, eu te amo de uma alcoólatra

Era maio, Dia das Mães. Fui dar uma volta numa feirinha perto de casa. Vi uma plaquinha decorativa com os dizeres: "Mãe todo mundo tem, mas só eu tenho você". Naqueles últimos dias ela não estava muito contente comigo, eu andava jogada nos cantos, afastada dos amigos, da família. Bebendo escondido. Mas era uma data importante e a plaquinha era tão fofa que resolvi comprar com a pouca grana que ainda restava na minha carteira.

Nessa época eu já tinha sofrido intervenção financeira, ou seja, só tinha o dinheiro que ganhava por semana dos meus pais e irmãos, não tinha conta em banco. Cheguei na casa dela e dei o presente. Ela mal olhou para mim e abriu. "Você fica gastando dinheiro com bobagem", resmungou, jogando a plaquinha numa gaveta. Ela estava triste. Eu chorei vendo ela esnobar o presente. Fiquei com raiva, mas mesmo com raiva disse: "Mãe, eu te amo". Silêncio.

Já fazia um tempo que ela não respondia nada quando eu dizia essa frase. O que eu geralmente escutava dela era: "Eu não sei mais o que fazer com você e onde foi que eu errei". Naquele dia não foi diferente. Eu hoje fico tentando imaginar a impotência dela em relação a mim. Uma mãe consegue tocar o coração do filho como nenhuma outra pessoa. Mas uma alcoólatra não tem o coração no lugar. Isso não quer dizer que eu fosse uma má pessoa, mas sim que eu estava doente e que isso me dava uma frieza quando o assunto era a bebida.

Já vi minha mãe desesperada me pedindo para não beber mais, para escolher novos caminhos. Foram incontáveis as vezes que simulei estar prestando atenção nos conselhos e broncas dela, mas na verdade ficava imaginando em que momento ela pararia com aquela ladainha e eu conseguiria achar uma bebida.

Minha mãe foi brava, nos dois sentidos da palavra, em todas as tentativas de tratamento que experimentei. Às vezes ela saía de cena e deixava minha irmã no comando. Sinto que sem essas escapadas, esses momentos de trégua, ela não teria aguentado. Sua pressão arterial começou a subir muito no final do meu alcoolismo ativo, e claro que a responsável era eu. Tudo bem que a genética dela já tinha uma disposição para isso, mas o fardo de aguentar uma filha bomba-relógio deve ter sido a gota d'água. Ela começou a tomar remédio para baixar a pressão. Me culpava para ver se eu me tocava, mas meu coração estava de fato ausente.

Lembro de um dia em que estávamos só nas duas na casa dela. Ela preparava o almoço enquanto eu trabalhava no computador, tentando acabar alguns frilas que tinha na época. Ela me chamou para almoçar, sem poder imaginar que eu tinha encontrado uma garrafa de gin escondida no quarto onde estava trabalhando. Quando sentei para comer, começou a me dar uma alegria em estar bêbada e fui lentamente dizendo que eu estava disposta a mudar de vez. Momentos depois ela descobriu que eu estava alterada. E repetiu o que tantas vezes já havia me dito: que se sentia morrer aos poucos cada vez que me via assim.

Foram incontáveis as vezes que ela foi me resgatar, madrugada adentro, à tarde, de manhã. Não tinha mais horário para eu estar louca e ela receber uma mensagem de alguém dizendo: "A Alice está muito estranha em tal lugar, acho melhor a senhora ir até lá."

Tampouco posso esquecer quando ela resolveu dar de presente pra mim e pra minha irmã uma viagem a Buenos Aires, junto com algumas amigas dela. Um dia, em Buenos Aires, tomei dois drinques antes de irmos jantar e segui tomando vinho com as amigas dela. Quando todos já estavam na sobremesa, eu comecei a virar o copo de todo mundo que tinha deixado um pouco de bebida.

Era constrangedor, eu sei. E não pouco. Nessa noite perdi minha bolsa e tive que fazer um B.O. porque meu voo de volta era no dia seguinte.

Minha mãe segurou o rojão tantas vezes, e todas as vezes eu a odiei com todas as minhas forças. Falava mal dela para todo mundo. Eu achava que ela não gostava de mim, mas não se tratava disso: ela não suportava mais aquela situação. Não suportava estar no mesmo ambiente que eu. Mas mãe não tem esse direito de não suportar… Ela ouviu quinhentas vezes: "Não fui eu que pedi para nascer."

Em recuperação, reconquistei o diálogo e também a amizade dela. Agora sou uma filha que cuida, que ajuda, que escuta. Hoje gosto tanto dela, brigo para ela não perder mais tempo na vida com bobagem. E ela me liga, me procura. "Alice, vem aqui em casa almoçar? Vamos viajar?". Sim, hoje somos parceiras como deveríamos ser. Não teve espaço para essa relação por muito tempo. Na ativa, falei milhares de vezes que a amava, hoje não falo mais. Apenas demonstro meu amor de todas as formas possíveis.

Desejo que no próximo Dia das Mães, filhas de alcoólatras não desistam de suas mães, por mais difícil que possa ser. E que as mães também não percam a esperança de ter suas filhas e filhos alcoólatras de volta para seu convívio. Eu fico olhando a cidade cheia de mensagens carinhosas e me dói só de pensar que as Alices na ativa estão sofrendo com a data, assim como suas mães e seus filhos e filhas.

É muito difícil virar o jogo, mas é possível. Muito amor a vocês que hoje enfrentam o inferno que passei. Feliz Dia das Mães.

*

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