Meu pai iria morrer e recebeu alta para ver Zé Celso uma última vez

Zé Celso - ANDRE PORTO

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Natalia Timerman

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Estamos em uma praça, ou talvez um parque, com alamedas e árvores em cujas sombras rapidamente nos protegemos, e a trupe ocupa o centro de um gramado, bem debaixo do sol. Pouca gente assiste, apenas uma família que também parece ser estrangeira, formada por um casal e três filhos que miram hipnotizados o espetáculo, um casal vestido de maneira não muito diferente dos participantes da peça e um velho de aparência frágil que bate palmas e sorri; os atores parecem encenar mais para eles mesmos, há músicos tocando percussão e instrumentos de sopro, e não aparentam desconforto com o calor. Ainda assim, sinto-me chegando no meio de algo já começado; sinto-me, de certa forma, interrompendo-os na sua apresentação.

A imagem da última vez que fui ao teatro com meu pai me vem instantaneamente à cabeça, como em um déjà-vu. Meu pai mesmo havia comprado os ingressos com bastante antecedência, e no intervalo entre a aquisição e o dia do espetáculo, o linfoma havia voltado, como se a peça fosse alguma ponte, uma comunicação entre a esperança de uma vida comum e sua impossibilidade ou sua negação, entre a continuidade e o fim da vida.

Até o momento em que saímos da sua casa para o Teatro Oficina, havia dúvidas se conseguiríamos ir. Seríamos apenas meu pai, Eder e eu; Martha não havia se interessado em assistir à peça "Roda Viva" dirigida e encenada por Zé Celso, e sua recusa só atesta a certeza que tinha de que meu pai estava de fato curado. Ela nem sequer hesitaria em ir se soubesse que seria a última vez.

No dia da peça, meu pai ainda estava internado: foi quando descobrimos que o tumor tinha voltado, a massa na região lombar, e todos, inclusive os médicos, achavam que seria outra coisa, até sair o resultado da biópsia; todos exceto meu pai, que já sabia, que já nos dizia, que sentia no seu corpo combalido. Ele voltou da sua última viagem, de Búzios, e foi direto para a UTI. Não havia, a partir de então, mais possibilidade de cura. Ele iria morrer, só não sabíamos quando. Bem, isto é uma verdade geral demais: ele iria provavelmente morrer por conta do linfoma, só não sabíamos quanto tempo ainda teríamos com ele.

A alta do hospital foi dada nesse dia para que ele conseguisse assistir à peça. Conferimos o horário de abertura do teatro, mas calculamos mal, entendemos errado, e aquele horário era na verdade o do início da peça, à qual chegamos atrasados. Qualquer pessoa que chegasse depois teria de ficar nos andares superiores, de acesso pelas escadas laterais do Oficina; mas meu pai estava usando um andador, não conseguia se sustentar sozinho em pé, muito menos subir as escadas. A pessoa gentil e compreensiva da porta entendeu a situação e nos deixou entrar no meio do espetáculo. Literalmente: Eder, eu e meu pai com seu andador descemos a rampa do oficina atrás dos atores vestidos de anjos pretos, no meio da cena, invadindo-a enquanto eles cantavam e dançavam, e éramos encaminhados por alguém a assentos inventados no vão entre as duas arquibancadas.

Ali, o tempo se abriu. A peça, as canções, meu pai que cantava, eu que cantaria; enquanto eu puder cantar, alguém vai ter de me ouvir, enquanto eu puder sorrir, sorrio então agora, neste país desconhecido que vou descobrindo um pouco ser meu, uma junção de momentos, o transcorrer das horas no Oficina, o sorriso que meu pai ostentava, como se não fosse morrer, ou como se fosse.

A trupe nos direciona para a rua ao lado do parque, assim como aquela atriz de seios nus e cabelos pretos e curtos apontava com as mãos a direção para que meu pai a seguisse, para que a seguíssemos todos e nos juntássemos aos atores e ao Zé Celso, que cantavam juntos até a rua, onde a cantoria continuou, até que se desvaneceu, até que pegamos um táxi, o andador do meu pai no porta-malas, e o levamos de volta a sua casa, para nunca mais voltar ao teatro.

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