Ex-presidiário, 77 anos, foi a instituição que funcionou contra a barbárie

No país das "instituições funcionando" enquanto a Amazônia e o Pantanal ardiam, a gripezinha patrocinada por Bolsonaro causava quase 700 mil mortes, a fome voltava, a corrupção se legalizava com o orçamento secreto e as disputas, por estúpidas que fossem, voltavam a ser resolvidas a bala, coube a um senhor de 77 anos de idade conseguir dar um basta. No país do legislativo cúmplice, do judiciário acovardado e da sociedade apática, coube a alguém que reúne em si uma constelação de estigmas — retirante, operário, ex-presidiário — ser o único anteparo eficaz contra a escalada da barbárie.

Há certo exagero em dizer que não fizemos nada ao longo dos últimos quatro anos. Quando se está nas cordas, golpeado por todos os lados e, no caso literal de muitos brasileiros, lutando para sobreviver contra o vírus, a fome, a insensibilidade e a violência, a opção é entrar no modo resistência. Ninguém faz história sozinho e está claro que a vitória de Lula é obra coletiva. De todo modo, por muito tempo e uma vez mais, depositamos toneladas dos nossos fracassos nos ombros de um único homem.

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Esperamos que ele saísse dos 580 dias de cárcere pronto para resgatar o Brasil das trevas, postergando a aposentadoria e engolindo a seco o desejo de vingança por uma prisão injusta e farsesca. Ele esteve à altura. Construiu uma frente amplíssima, que incluiu basicamente todos aqueles com um coração no peito e dois neurônios comunicantes para sentir/entender o tamanho da encrenca em que estávamos metidos até este 30 de outubro. Lula deu a mão aos diferentes, buscou apoio entre adversários, ofereceu espaço a ex-algozes. Um deles será vice-presidente a partir de 1º de janeiro.

Pedimos, como apontou Celso Rocha de Barros, que ele representasse o Brasil contra a máquina. Se todo candidato à reeleição usa a estrutura pública como arma de campanha, Bolsonaro foi quem levou a prática a níveis inimagináveis com o orçamento secreto, o Auxílio Brasil sem previsão orçamentária para o ano que vem, a baixa nos combustíveis com um corte de impostos temporário e eleitoreiro. Lula sobreviveu ao esquema de compra de votos e fraude eleitoral. Manteve o apoio dos mais pobres e mesmo entre os beneficiários do auxílio.

Complicamos o que já era difícil e demandamos que ele superasse o próprio partido que criou. As disputas estaduais e a eleição para o Congresso atestam que Lula foi maior do que o PT, conseguindo votações mais robustas que as dos correligionários locais. Seguimos exigindo muito ao entregar um Congresso reacionário, que vai tumultuar o mais possível e barganhar o que puder em nome da governabilidade. Se há alguém capaz de governar com a espada do impeachment sob a cabeça, animamo-nos, esse alguém é o senhor de 77 anos, o retirante pernambucano, o operário, o ex-presidiário.

Mesmo antes destas eleições, Lula já era o maior brasileiro da história. Se havia talvez alguma rivalidade com Getúlio Vargas, será sepultada a partir de hoje. Nas últimas quatro décadas, a história da política nacional tem gravitado basicamente em torno do que Lula fez ou do que deixou de fazer. Das greves às cotas, do combate à ditadura até a luta contra os neofascismos, do embuste do encarceramento à ruína do lavajatismo, da "ameaça comunista" à concertação de centro-esquerda que conseguiu, efetivamente, promover redução na desigualdade. Para a sociologia, carisma é a crença de que uma pessoa é portadora de poderes extraordinários, capaz de realizar feitos inimagináveis. O desafio, agora, é iniciar o processo de cura de um país capturado pelo ódio, medo e ressentimento. Com a palavra, o novo presidente do Brasil.

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