Bolsonaro leva 44 horas para provar que calado é um poeta

É sintomático que um homem leve quase 45 horas para digerir o luto por uma perda pessoal, mas não tenha dedicado sequer 1 minuto, ao longo de mais de 2 anos, para se solidarizar concretamente com os 688 mil brasileiros vitimados pela covid. Se por um lado seu raro mutismo foi cúmplice estratégico da baderna rodoviária golpista comandada por apoiadores em todo o país, de outro foi um alívio. O pronunciamento do agora futuro ex-presidente na tarde de terça (1) não trouxe qualquer novidade em forma ou conteúdo, desimportante porque o poder não está mais lá. Parafraseando o hoje bolsonarista Romário, o presidente calado é um poeta.

Forma: fiel à lógica do espetáculo, convoca uma entrevista sem pauta prévia para as três da tarde. O atraso de 98 minutos talvez pretendesse ampliar o suspense, mas só causou irritação em quem tinha mais o que fazer. O clima de fim de festa incluiu interrupção de luz no Planalto e a ausência dos principais ministros no paredão quase exclusivo de homens brancos que se formou atrás de Bolsonaro

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Conteúdo: cumprimento protocolar aos eleitores e repetição de expressões surradas: "joguei dentro das quatro linhas da constituição", "enfrentei o sistema", "Deus, pátria e família" e outras que poderiam ser combinadas em um gerador aleatório de discursos bolsonaristas. Descreveu os "movimentos populares" [sic.] nas estradas como "fruto de indignação e sentimento de injustiça com o processo eleitoral", mas notou que "os métodos não podem ser o da esquerda", reprimenda envergonhada que talvez não seja plenamente compreendida pela turba. A sutileza não é o forte deles.

Há uma distância intergaláctica entre o chororô narcisista no Planalto e o discurso de pacificação do presidente eleito ainda no domingo (30). Se fosse sério, Bolsonaro estaria cacifado por 58 milhões de votos como líder legítimo da oposição. Para isso, porém, seria necessário viver uma nova vida desde o zero. O homem que nunca teve estatura para a função que conquistou começa a escrever os últimos capítulos de seu mandato imbuído do espírito de baixo clero com que, num ato falho, pediu votos para "deputado federal" no debate da TV Globo. Entrará para a história como o presidente que, derrotado por estreita margem nas urnas, amuou-se, recusou-se a cumprimentar o vencedor, meteu-se em pijamas e foi dormir. Calou-se por quase dois dias e quando abre a boca é para dizer nada.

Cumprindo uma espécie de aviso prévio, o ex-presidente em exercício age como o funcionário que, sabendo-se demitido, usa o xerox da firma para imprimir currículo - teria combinado casa, salário e advogados com o presidente do PL, segundo o jornalista Leandro Mazzini, da Istoé - e o telefone para espalhar fofocas - teorias estapafúrdias sobre fraude eleitoral não surgem no éter. Diante da imagem do chefe que pendura o paletó para escafeder-se misteriosamente, sua equipe de seguidores delirantes imagina uma estratégia brilhante por trás do silêncio e vai às ruas em patética insurreição. Uma turba feita do mesmo material dos invasores do Capitólio. À moda de Trump, servirão como bucha de canhão também por aqui. Serão abandonados por Bolsonaro, como tantos outros o foram ao longo dos últimos anos.

Batente que é bom, nada. E nesse ponto é melhor para o Brasil: como o país nunca foi prioridade para Bolsonaro, é recomendável que a transição fique sob responsabilidade de assessores com o mínimo compromisso republicano. Quanto a Bolsonaro, desempregado depois de mais de 3 décadas ininterruptas de cargo público, começa a se despedir da presidência realizando mais uma proeza: sair menor do que entrou.

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