'São Paulo mostra que a desigualdade está aqui, latente e tangível'

A praça principal de Paraty (RJ) estava lotada no sábado à noite. A expectativa da maioria era ver o ator (e escritor) Lázaro Ramos, que participaria da última mesa da noite da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no fim de novembro de 2022. Mas quem levantou literalmente o público foi a poeta paulistana Midria da Silva Pereira, de 23 anos.

Com voz mansa e rostinho de quem acabou de entrar na faculdade, Midria calou centenas de pessoas com seu poema "A menina que nasceu sem cor". "Eu sou a menina que nasceu sem cor porque nasci num país sem memória", diz um dos versos que discute racismo com alfinetadas e uma pitada de bom humor.

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Midria nasceu e morou até a adolescência no extremo da zona leste de São Paulo, no bairro Recanto Verde do Sol. O local fica a 40 km do centro da cidade. Só conheceu a Avenida Paulista com 14 anos, num passeio de carro com o namorado de uma tia, depois de uma ida ao cinema. Entrou na faculdade em 2017 e o curso de Ciências Sociais, na USP, a levou ao outro lado da metrópole, na zona Oeste (são 70 km do bairro onde nasceu).

"Até então, minha circulação por São Paulo estava muito restrita. Não tinha referência do que era a cidade fora dali. São Paulo é gigante, são muitas cidades dentro de uma e isso exemplifica muitas desigualdades", diz.

O direito à cidadania como um lugar da existência plena, à saúde, ao transporte, à educação, ao saneamento e à cultura passa, segundo ela, por essa dificuldade de acesso. "São Paulo não dá conta de todas as questões. O Brasil tem o sertão, comunidades ribeirinhas, caiçaras, pescadores, povos da floresta.... mas São Paulo mostra que a desigualdade está aqui, latente e tangível à minha realidade hoje", explica.

Democratizar o conhecimento

2 - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram 2 - TodaTeen - TodaTeen Midria, autora de "A Menina que Nasceu sem Cor", fala sobre ações antirracistas para incorporar no cotidiano

Midria cita a poeta Carolina Maria de Jesus em vários momentos da conversa com 💥️Ecoa. "É importante olhar para ela e entender que estamos de maneira atemporal presentes com nossas palavras, com nossas escritas, produzindo outras formas de existência e de afetação no mundo", diz.

A consciência da urgência veio ainda no colégio, quando percebeu a disparidade entre o que lia e o que acontecia ao seu redor. "A gente está morrendo, tem gente com fome. Carolina Maria de Jesus já falava disso. Quando fiz a transição capilar sofri vários episódios de violência em casa e na rua e quis escrever sobre isso. Também é poesia falar sobre o que está próximo de mim".

Midria acha que se Carolina estivesse viva hoje, seria aquela mulher respeitada nos saraus. "Todos parariam para escutar: agora Carolina vai mandar os poemas dela. Ela tinha voz, mas não tinha plataforma para ter escuta e, mesmo quando publicou livros por grandes editoras, não teve o reconhecimento que deveria ter".

Menina sem cor

O poema que calou a praça em Paraty na Flip trata do colorismo. A poeta afirma nos versos que não era considerada negra e sim chamada de parda, o que deixava sua consciência racial bamba.

"O colorismo é um tema gigante, compreende muitas questões, muitas problemáticas. É o mecanismo do racismo relacionado a eugenia para apagar as raízes. Acho importante falar desse tema espinhoso porque há muitas pessoas que não se consideram negras, os negros de pele clara. Quero que essas pessoas possam se ver ali e se reconstruir. Quantas meninas negras que alisavam o cabelo e não se consideravam negras passam a entender isso?", pergunta.

Ela se formou na USP em 2022, e lá deixou sua marca no Slam Usperifa, que organizou com dois amigos: "O Usperifa é um lugar de cultura, de estudantes negros, indígenas... pessoas que estão lá para ouvir, aprender e se colocar em lugar de escuta. Racismo não é só história das pessoas pretas, também é história das pessoas brancas que se eximem".

Na Flip, Midria lançou o livro "Cartas de amor para mulheres negras". Vem uma nova obra em 2023, pela editora Record. Nos planos também está continuar falando com alunos e professores de escolas públicas sobre questões de gênero, direito à cidade, e cultura periféricas, e fomentar saraus e oficinas. "Só falta tempo para fazer tudo isso".

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