Na morte de Gal Costa, choramos um país que ressuscita

Mais uma vez o país chora — quantas lágrimas tem nos cabido narrar. Na voz inundada da minha mulher descobri a morte de Gal Costa. Liguei o rádio e ouvi o locutor que chorava, o entrevistado que chorava, a jornalista que chorava, e era o som das lágrimas o que saía de suas bocas. Soube de muitos que passaram a tarde ouvindo Gal sem parar, procurando em cada verso a palavra que a contemplasse, que desse sentido à sua súbita falta. Como é triste, que perda fenomenal, diziam, e seguiam noite adentro ouvindo sobre as lágrimas negras que caem, saem, doem.

Não choro. Assim começa a música interpretada por ela que mais me move. Conta de um rapaz que fica parado, calado, quieto, não corre, não chora, não conversa, como tantas vezes me vi parado e calado diante de alguma perda, quieto ante uma dor qualquer. O rapaz massacra seu medo, mascara sua dor, e então se transforma quando se vê sozinho diante do espelho, e chora, e corre, e conversa, e sobretudo escreve, compondo os versos que Gal nos canta em sua voz primeiro contida, logo desabrida e potente. Não choro como chora o país, mas acho que o entendo.

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Não me lembro de ter escrito alguma vez o nome de Gal Costa, de tê-lo escrito literariamente, digo. Gal é essa mulher imensa que cantou a nossa vida inteira, como muitos já disseram, que cantou a nós todos tanto quanto a si mesma, e ainda assim sinto que não lhe dedicamos pensamento suficiente. É preciso estar atento e forte, ela nos gritou infinitas vezes com sabedoria plena, e acho que fomos aprendendo a estar fortes e atentos, só não a ela. Gal se foi sem que a entendêssemos por completo, como talvez aconteça sempre, e deve ser por isso que agora nos apressamos em ouvi-la de novo, incessantemente, em ouvi-la por fim.

Gal Costa morreu aos 77 anos, em São Paulo - Divulgação - Divulgação Gal Costa morreu aos 77 anos, em São Paulo

Mas não há fim nenhum na morte dessa mulher. Alguém já falou sobre a morte dos intérpretes, muito menos definitiva que a dos poetas, pois a voz que é o âmago de sua existência concreta se registra e se deixa perpetuar no tempo. Elis segue viva a cantar cheia de dentes, a cada dia podemos encontrá-la, mesmo os que nunca a perdemos. A ausência de Gal será sentida duramente pelos que a conheceram, mas aos demais torna-se a chance de revigorar sua presença. Belezas são coisas acesas por dentro, tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento, foi ela quem disse. Se estava certa, não há razão para estarmos tristes: saberemos manter essa mulher acesa.

Sinto, em todo caso, que é ela quem nos mantém acesos, que foi sua morte o que nos manteve vivos por mais esses dias, nos sensibilizando ainda uma vez, rompendo qualquer torpor ou amargura que porventura permanecesse. Pouco a pouco vamos deixando para trás um longo suplício, vamos elaborando um luto lento que agora inclui essa perda, mas se alonga muito além dela, nas profundezas sombrias de um passado tão recente. Na morte de Gal, choramos um país que retorna à vida. Ela é tão bonita, ela é tão bonita que na certa a ressuscitarão, canta Gal ainda, a partir de Maiakovski. Este país é tão bonito, é tão bonito na agudeza de suas vozes, nos versos de seus poetas, que na certa em pouco tempo ressuscita.

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