Sobre o fantasma do silêncio e o medo de abandonar a escrita

Rimbaud, Hölderlin, Raduan, Rulfo, impressionante como raspam os nomes dos desistentes, como raspa também meu nome se pronunciado à devida maneira. Em Rulfo me demoro um pouco, escuto o motivo banal que Vila-Matas inventa para sua deserção, o motivo risível e ainda assim talvez certeiro: "É que morreu meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias." Escuto e rio, mas não me convenço. Sinto que em Rulfo, como em todos eles, há algo de sério e de aflitivo na desistência, há uma angústia sedimentada no tempo, convertida em certeza negativa. Mas posso estar errado, posso estar projetando sobre eles, bem mais tranquilos e sábios do que eu, meu módico sofrimento.

Toda vez que leio sobre Rulfo, em todo caso, vou parar em lugar distante, num tempo em que me sentia escritor pleno, em que nada me fazia desconfiar que um dia meu destino pudesse se aproximar ao dele, talvez. Estava na feira do livro de Guadalajara, participava de conversas animadas, à noite enchia a cara de tequila para celebrar a literatura buliçosa e festiva em que me via imerso. As manhãs eram ligeiramente mais difíceis: naquela, ainda digerindo a noite, eu devia visitar uma escola da região de Jalisco, para conversar sobre o ofício da escrita com adolescentes decerto aborrecidos.

Chegar à escola tomava mais tempo do que eu imaginara, exigia mais da ressaca e do tédio: eram três horas numa estrada pedregosa cruzando um território árido, com as chamas do deserto em meus olhos. Ainda nauseado desci do carro, e com surpresa ouvi o alarido juvenil que preparava a recepção entusiasmada, o auditório lotado a me acolher com palmas, ao fundo meu rosto estampado num cartaz enorme. Fui ao palco e me pus a falar, e não demorei a perceber a obviedade de que adolescente nenhum ali jamais ouvira falar sobre mim ou sobre meus livros, e que ainda assim eram generosos com um forasteiro desconhecido. Quando terminei de falar, no espanhol fluido que trago da infância, por uns minutos o único pedido que ouvi foi que dissesse algo em português, porque eles estavam esperando um escritor brasileiro.

Tudo isso é um desvio, retrata apenas os matizes surreais que pode ganhar o mundo literário, em sua estranheza contumaz, em sua insensatez tão cristalina. Aquilo era cômico e vivo, mas não podia estar mais distante da literatura, da busca solitária e íntima, da busca infrutífera pela palavra que por fim diga, revele, signifique. O que importa disso tudo é o retorno, o momento preciso em que entramos num povoado indistinto e o motorista apontou para uma casa qualquer, anunciando que ali nascera Juan Rulfo. O momento em que entendi que o deserto vermelho que feria minhas retinas era aquele sobre o qual eu lera alguns anos antes com pleno encantamento, nas páginas de um mexicano silente, um homem que dissera o que era preciso e então se calara para sempre.

Enquanto voltávamos a Guadalajara, sob um "silêncio tão denso que parecia aprisionar tudo e, ao mesmo tempo, ouvir tudo", como Rulfo descrevera, a força de suas páginas nunca esquecidas me atingia com assombrosa eloquência. Aquilo sim devia ser a literatura, não o outro mundo de vaidades e dissipações festivas, aquela maneira de capturar uma paisagem e alcançar-lhe o sentido recôndito, profundo, isso devia ser a literatura. E era assim que ela podia transformar o mundo, subjugando a náusea e o tédio.

A isso eu devia entregar a minha vida inteira, ou uma fração da vida, enquanto o silêncio não corroesse os meus pensamentos. Perdoe, leitor, a eventual impertinência deste texto. Às vezes preciso retornar ao silêncio de Rulfo para não me calar de vez.

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