Este ano não quero me perder: que venha o Carnaval do reencontro

Não será desorbitado dizer que os seres humanos inventaram o Carnaval para que melhor pudessem se perder. Uma densa massa a se empurrar em ruas estreitas, atrás de máscaras ou sob camadas de brilhos ofuscantes, a embriaguez a turvar ao máximo os sentidos, a música alta cantada em uníssono a abafar qualquer apelo. A invenção é de uma eficácia impressionante: quem quer que ali se encontre há de se perder rapidamente, e não mais sentir suas as pernas que o carregam, e não mais ver suas as mãos lançadas ao alto, e não mais se ouvir na própria voz, e não mais existir senão distante de si, convertido em outro, outro ser indistinguível em meio à gente a festejar. Talvez assim consiga esquecer, por um breve momento, a monótona figura que o contempla a cada manhã no espelho, e se descobrir novo, se descobrir alheio.

O caso é que vocês gostam de se perder, foi o que disse minha irmã quando soube no baile de sábado que de novo tínhamos nos desgarrado irreparavelmente, minha mulher e eu. Foi um comentário lúcido, que abriu num relance cinematográfico a infinidade de vezes em que de fato nos perdemos, nos vinte carnavais que acreditamos ter passado unidos. A infinidade de vezes em que ela se afligiu com um sumiço meu, e eu me afligi com um sumiço dela, e ela se afligiu com o sumiço dela, e eu me afligi com o sumiço meu. Não foram sempre aflições menores, vale dizer; penso que chegaram a ser sofridas, angustiantes, perturbadoras até. E, no entanto, a cada vez foi valioso o instante do reencontro, o olhar a desfalecer num cuidado amoroso, e cálidos os dedos que trançamos ao voltarmos para casa juntos.

Uma cena infantil também se abriu com as palavras da minha irmã. Uma vez, tentei ir atrás dela numa praia qualquer e acabei me perdendo por longo tempo, vagando por dunas austeras sem coragem de pedir ajuda, num desespero de menino tímido. Quando consegui voltar, a normalidade era absoluta, meus pais recostados em conforto pleno, meu irmão a escorregar nas dunas. A história se tornou uma anedota recorrente, meus pais a ressalvar que devo ter sumido por uns três minutos, se ninguém percebeu. Eu aprendi a rir da minha dor de menino e a encontrar algum prazer na suposta desatenção familiar, como se pudesse gozar agora daquela liberdade precoce, ou como se essa tivesse sido a minha primeira perdição de Carnaval.

Mas já começo a me perder nesta crônica sobre me perder, peço perdão. Acabei por me fazer mais pessoal, mas o que queria era me aliar à multidão, pensar o Carnaval como ocasião em que conseguimos todos nos perder, em que o país consegue enfim se perder de si. Não será desorbitado dizer que, sob a máscara extravagante do Carnaval, existe o impulso de subverter a iníqua ordem cotidiana, o desejo de um povo de romper com os rigores que o governam no resto do ano. E, no entanto, nada foi mais aflitivo nos últimos anos do que a ânsia do país em se desencontrar, uma ânsia de subverter toda ordem não para se libertar, mas para agravar iniquidades e rigores. Da pior maneira, o Brasil se perdeu si, e vinha perdido até mesmo do Carnaval.

Não sei o que pensará o leitor, a leitora, mas desta vez não sinto o imperativo de me perder, não quero existir tão distante de mim, quero voltar a sentir minhas as pernas que me carregam. Estarei nas ruas estreitas, sob brilhos ofuscantes, em discreto estado de embriaguez, sim, mas tomado agora pelo inesperado desejo de me reencontrar comigo mesmo. E sei que não estarei só, sei que a densa massa que me acompanha deseja um país de reencontro, um país de liberdade, um país cujo olhar desfalece num cuidado amoroso pelos seus. Sei que a massa que me acompanha saberá reinventar o Carnaval.

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