Bethânia e Caetano, síntese de um Brasil musical

Certa vez encontrei Caetano Veloso numa ocasião social e, em meio a conversas e lembranças, ele disse meio bravo e alto, provocativo, para que outros presentes pudessem ouvir: "Vocês não gostavam de Maria Bethânia!".

"Vocês" eram os jornalistas –ou alguns deles– que trabalharam na Ilustrada na década de 1980, depois que Matinas Suzuki Jr. assumiu a editoria, quando a ditadura minguava e um novo cenário se desenhava na política e também na cultura brasileira.

Foi uma época de efervescência, com seus contornos próprios na cidade de São Paulo, que atraiu muita gente de fora, inclusive do Rio, para projetos emergentes, da renovação editorial da 💥️Folha à criação de editoras, como a Companhia das Letras, agências de publicidade, como a W/ Brasil, galerias de arte, grupos de teatro, revistas, espaços para música, estúdios de fotografia, produtoras de cinema, etc.

Os paulistas também projetavam seu desejo de hegemonia na esfera política, com o chamado triunvirato USP-CUT-Fiesp –para usar a boa expressão do sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos.

Não é que não gostássemos de Bethânia, Chico Buarque ou Milton Nascimento, mas havia ali uma inclinação mais internacionalista, crítica em relação à cultura de esquerda nacional-popular e a intelectuais e artistas que gravitavam pela constelação do Partido Comunista, tratados pelos mais radicais como "populistas" –termo que hoje já ganhou novos significados.

Ao contrário do que poderia imaginar quem não viveu aqueles tempos, o fato de a ditadura ser o grande inimigo comum não aplanava a diversidade e as controvérsias no campo cultural, digamos, "progressista" –turmas com visões diferentes, embates acalorados, disputas e rachas sobre estética e política.

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Esse cenário, como se sabe, vinha pelo menos dos anos 50 e 60, com clivagens do tipo abstracionistas versus figurativistas, defensores da bossa nova contra críticos da influência americanizada do jazz, puristas da cultura de "raízes" e antropófagos tropicalistas, concisos minimalistas contra expressionistas derramados, marianos e oswaldianos, artífices da narrativa e alegoristas da fragmentação, os que curtiam David Bowie e usavam drogas e os que achavam tudo isso alienação, os desbundados da contracultura e os "caretas" do mainstream politizado.

Naquele mundo oitentista, a geração do rock tomou a cena e ajudou a estufar as velas dos cosmopolitas e dos que viam com certo fastio a produção cultural mais discursiva e conteudista –no campo da música representada pela chamada MPB.

Maria Bethânia na realidade nunca se filiou a nenhuma dessas vertentes ou movimentos. Estourou no Opinião, era do grupo dos baianos, não participou do tropicalismo, gostava de Roberto Carlos e Chico Buarque, era a musa de "Carcará" e também de "Janelas Abertas Nº 2" ou "Drama". Não era publicamente uma figura que fosse orientar o movimento, e esse deslocamento não impediu, pelo contrário, favoreceu sua ascensão a um estrelato de grande luminosidade e amplitude, entidade imponente da música de nosso país.

Hoje essas disputas perderam um tanto de sentido e em muito deixaram de ter o significado que tinham nos anos em que a cultura, particularmente a música popular, era o território privilegiado de elaboração de uma identidade nacional, o lugar onde simbolicamente se fazia ou se tentava fazer um país.

Bethânia e Caetano preparam-se agora para uma turnê que já nasce com a perspectiva de ser uma boa síntese dessa dialética, se podemos dizer assim. Sinal dos tempos, já circulam nas redes sociais campanhas de boicote aos dois "comunistas". E o governador do Rio, Cláudio Castro, criou dificuldades para o espetáculo ser realizado no Maracanã. Caminhamos tanto para reencontrar esse pântano.

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