Rotina de violência sexual e gravidez precoce no Marajó é alimentada por desassistência nos rios

Uma rotina silenciosa, com ares de normalidade para parte das pessoas que a vivenciam, preenche os dias e os espaços na porção ocidental do arquipélago do Marajó (Pará), na amazônia atlântica brasileira.

No Hospital Regional do Marajó, em Breves, a maior cidade do arquipélago, uma criança de 12 anos, grávida, é internada para o parto. Ela só deixou sua comunidade ribeirinha, que fica a horas e horas em um barco, quando a gravidez completou nove meses. O pai seria um primo, de 13 anos.

A poucos quilômetros do hospital, num bairro com casas de madeira suspensas em uma área de igarapé, duas primas de 14 anos serão mães em semanas. Uma será mãe solo. A outra deixou uma comunidade ribeirinha acompanhada do companheiro, um homem de 20 anos que obtém renda da coleta de açaí e da pesca tradicional de camarão.

Rios adentro, longe da área urbana, uma mãe se afeiçoa aos poucos ao filho de colo, depois de meses de resistência. Ela acaba de completar 18 anos. No ano passado, foi estuprada pelo próprio pai e ficou grávida, conforme a denúncia feita. O agressor fugiu. Na casa simples de madeira, na margem do rio, há alívio com a fuga.

Em Melgaço, a uma hora de lancha de Breves, um casal —uma menina de 14 anos e um homem de 25— procura o posto de saúde da cidade, conhecida por ter o pior IDH (índice de desenvolvimento humano) do país. Grávida, ela procura ajuda médica, com a mãe e o companheiro, para o início de um pré-natal.

Numa sala ao lado, mulheres que recebem Bolsa Família levam seus filhos para serem pesados. As famílias gastaram horas em embarcações até ali. Uma mulher tem 27 anos, oito filhos e está grávida. Outra mulher, aos 39, é mãe de 13. O mais velho tem 25 anos. O mais novinho, sete meses.

Esses recortes do cotidiano em espaços públicos no Marajó compõem uma realidade complexa, em que crianças e adolescentes são submetidas a violência sexual, ora com consentimento de familiares, em que se permitem os relacionamentos com homens adultos, ora por meio do emprego mais literal da violência.

O pano de fundo dessas vivências é a persistência da pobreza, que atinge 3 em 4 marajoaras na porção ocidental, e a inexistência de políticas e equipamentos públicos básicos, num lugar onde a vida é mais rural –o termo é usado pelas pessoas do lugar para se referirem às comunidades ribeirinhas– do que urbana.

O Estado não chega para quem vive nos rios, o que alimenta ciclos de violência sexual. A assistência que existe está voltada às cidades. Breves é metade rural. Melgaço, 78%.

O Conselho Tutelar de Breves, a Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente e a rede de assistência psicossocial não têm lanchas próprias para acesso às comunidades. O trabalho de campo dos conselheiros só ocorre quando há um empréstimo da lancha pela Polícia Militar ou quando a Prefeitura de Breves consegue a locação de um veículo.

Não há ambulatório para vítimas de violência sexual, a delegacia não funciona aos fins de semana, inexiste um serviço de acolhimento e hospedagem para adultos que acompanham crianças e adolescentes que passaram por um abuso sexual. Algumas cidades do arquipélago não têm abrigos para crianças, que precisam ser levadas a outros municípios.

Em Melgaço, unidades de saúde recebem crianças e adolescentes grávidas e não há comunicação de todos os casos ao Conselho Tutelar ou à polícia. Pela lei, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é um estupro de vulnerável. Em parte das situações, a própria família busca evitar esses comunicados, para não ver alguém próximo em situação de persecução penal.

Por dez dias, a Folha acompanhou a realidade do Marajó profundo, com um trabalho de reportagem feito nas áreas urbanas de Breves e Melgaço –que estão a até 14 horas de Belém em embarcações comerciais– e em comunidades e casas existentes no curso de quatro rios: Aramã, Mapuá, Mujirum e Tajapuru.

O jornal presenciou um dia de assistência do Conselho Tutelar e do Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) de Breves a duas vítimas de abusos sexuais em comunidades distantes da cidade. A viagem havia sido adiada em mais de uma semana por falta de lancha própria. Nesse período, uma das vítimas, de 9 anos, teria convivido com comentários jocosos na escola.

A exploração sexual infantil, que são os casos que envolvem vantagem financeira a adultos, persiste no Marajó, mas em escala inferior ao que já existiu, segundo todos os agentes, servidores e autoridades com quem a reportagem conversou.

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