Com o que sonham drosófilas?

O romance que deu origem ao filme "Blade Runner" se chamava, no original de Philip K. Dick, "Sonham Androides com Carneirinhos Elétricos?" E moscas-da-fruta (✅Drosophila melanogaster), se de fato tiveram algo equiparável ao sono REM, com o que sonharão?

Quem nasceu no século 20 aprendeu na escola que uma pergunta dessas não faria sentido. Segundo a biologia dominante, nenhum mamífero —exceto humanos— apresentaria faculdades mentais como razão, consciência e sonhos. Se não valia nem para parentes primatas, muito menos para insetos, moluscos ou crustáceos.

Pois bem: a fila andou. Precisamos começar a pensar na eventualidade de moscas sonharem, abelhas brincarem, sépias terem memórias detalhadas e peixes paulistinha serem providos de curiosidade.

Em 19 de abril um grupo de cientistas cognitivos e filósofos publicou a Declaração de Nova York sobre Consciência Animal, na qual afirmam três pontos sobre a questão, mesmo reconhecendo toda a incerteza envolvida:

Um, que há forte base científica para atribuir experiência consciente a outros mamíferos e aves.

Dois, que a evidência empírica indica uma possibilidade realista de haver experiência consciente em todos os vertebrados, incluindo répteis, anfíbios e peixes.

Três, que é irresponsável, em caso de chance razoável de experiência consciente num animal, ignorar essa possibilidade na tomada de decisões que possam afetar o bicho. "Devemos considerar os riscos ao bem-estar e usar evidências para basear nossas repostas a esses riscos", recomenda a declaração.

Claro que por experiência consciente em animais não se entende o tipo de consciência mediada por palavras e conceitos abstratos característica de humanos. O que está em jogo é o que se chama de "consciência fenomenal", ou senciência.

Em outras palavras, trata-se da capacidade de ter experiências subjetivas. "Este sentido do termo ‘consciência’ é o que Thomas Nagel tinha em mente quando fez a famosa pergunta ‘Como é que é ser um morcego?’ " –explica o manifesto.

O documento cita várias pesquisas apontando a presença de variedades de consciência em muito mais pontos do espectro evolutivo do que sonhava nossa vã filosofia. Uma das mais surpreendentes diz respeito ao sono das drosófilas.

Em 2023, um grupo da Austrália liderado por Bruno van Swinderen publicou estudo em que mostrava ter induzido dois tipos de sono nas moscas. Um é mais tranquilo, por assim dizer silencioso, comparável ao sono de onda lenta em humanos.

Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha

Usando estímulos diferentes, a equipe logrou induzir outra modalidade de sono durante o qual eram ativados genes relevantes para funções de vigília. Ou seja, um sono com atividade cognitiva. Com boa vontade, pode-se pensar em sono REM –mas aí surge a questão fascinante: com o que sonharão as mosquinhas?

Nunca haverá boa resposta para a pergunta, claro. O ponto importante está em sua formulação, por retórica que seja, que se tornou plausível porque está em marcha uma mudança tectônica da posição dos humanos na grande cadeia da vida.

Até há pouco, a espécie se percebia como exceção tão notável no reino animal que justificaria colocar-se à parte, acima da ralé quadrúpede ou artrópode. A consciência nos apartaria de todos os seres, a meio caminho do divino, no ápice da criação.

Não é bem assim, a ciência deixa mais e mais claro. Um dia talvez a dúvida passe a abranger até plantas e fungos. Com as raízes e hifas agarradas ao solo, terão elas algum pensamento mais pé no chão e menos pretensioso do que o humano?

O que você está lendo é [Com o que sonham drosófilas?].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

Wonderful comments

    Login You can publish only after logging in...