Leitura Fácil perturba com provocações sobre deficiência e inteligência

Uma das quatro mulheres com "deficiência intelectual" que protagonizam "Leitura Fácil", Nati sofre de algo chamado "síndrome das comportas".

Como uma espécie de ciborgue hiperpolitizada, a personagem vê seu rosto se cobrir com painéis transparentes toda vez que é confrontada com discursos e atitudes conservadores. A engrenagem funciona como um mecanismo protetor, mas impede a comunicação: uma vez ativada, Nati dispara contra tudo que entende como machista ou fascista (aliás para ela sinônimos). O mundo torna-se opaco a ela e vice-versa.

Sua prima Marga, por sua vez, é iletrada e tem compulsão sexual, condição que experimenta livremente, de tal modo que corre na Justiça um processo que visa autorizar sua esterilização e que é um dos fios condutores da narrativa.

As outras mulheres da família são Patri —definida como obesa e acometida por "logorreia", uma disposição irresistível a falar— e a mais "adaptada", a gaga Ángels, que está escrevendo, pelo WhatsApp, a história das quatro.

As memórias de Ángels são compostas no modo "leitura fácil" —gênero que evita polissemias, orações complexas e digressões, entre outras regras, de modo a "democratizar" a comunicação, conforme um rigoroso manual. Entremeadas aos capítulos do livro, são uma divertida e por vezes melancólica lição a respeito do poder da linguagem e do poder de quem a controla.

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Nati é, segundo as vozes do romance de Cristina Morales, a acometida com o maior grau de deficiência. Bailarina desde pequena e com formação universitária, um acidente durante o doutorado lhe ativou as tais comportas.

Ela é também a mais articulada, decidida e autônoma. São dados suficientes para disparar no leitor a percepção de que, em "Leitura Fácil", a ironia caminha junto à denúncia política: como seria ela a mais deficiente —ou "retardada", como dizem as próprias personagens— se é notoriamente a mais inteligente?

Morales não produz, porém, uma ironia simples, que arranca risos cúmplices, mas sim uma algaravia perturbadora, marcada pelos múltiplos gêneros que compõem o romance: monólogos, diálogos, romance memorialístico, ata de assembleia, depoimentos na Justiça, um fanzine.

Esse composto polifônico, vertido brilhantemente para o português por Elisa Menezes, deixa o leitor em suspensão, sempre à procura de uma solução de sentido, que não virá.

Tampouco a denúncia apresentada é óbvia. É acusada, sim, a opressão aos comportamentos e formas de pensamento não conformes ao sistema sociopolítico corrente —bem enraizado na Barcelona dos anos 2010—, assim como se mostra que os mecanismos de inclusão com frequência promovem o apagamento das diferenças. No entanto, a complexidade das formas de lidar com esses abusos é evidenciada nas diferentes vozes narrativas.

Temos os arroubos intermináveis de Nati, que escapa à posição de heroína ao exagerar na generalização e virulência de suas acusações: se todos são para ela fascistas, que solução, mesmo provisória, poderá haver?

No outro polo, Ángels mostra o poder sutil e difícil de quem escolhe obedecer às regras para garantir a sobrevivência. Do mesmo modo, a verborragia de Patri –apresentada nos depoimentos do processo de esterilização de Marga— esconde uma consciência clara dos mecanismos de violação dos direitos e liberdade a que estão todas submetidas.

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