Ritual ancestral no Xingu é ameaçado por mudanças no clima: 'Rio secou'

O sol ainda demoraria a raiar quando homens e mulheres do povo Mehinako, moradores do Território Indígena do Xingu (TIX), em Mato Grosso, começaram a se dirigir até uma lagoa sagrada a dois quilômetros de distância de suas casas.

Era o início dos rituais que antecederiam uma grande pescaria, necessária para alimentar os convidados que chegavam de outras aldeias para o Quarup, o ritual fúnebre ancestral dos povos originários da região do Alto Xingu.

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Às margens da lagoa, enquanto o pajé entoava seus cânticos para que os pescadores se mantivessem protegidos das arraias e piranhas, algumas fogueiras eram acesas para que os indígenas ali presentes realizassem outros ritos, considerados fundamentais para que nada atrapalhasse um dos momentos mais importantes da cerimônia que daria fim ao luto dos familiares da pajé Iamony Mehinako, que morreu em maio de 2023, vítima da covid-19.

Uma dessas práticas consiste em acender tochas e queimar os pelos dos corpos de todos os homens que vão entrar na água e das mulheres que vão manusear os peixes para o preparo. O cheiro do pelo queimado, eles creem, espanta animais peçonhentos e evita outros tipos de acidentes

O clima naquela manhã era de diversão, com risadas e brincadeiras entre eles, mas havia também uma preocupação. E, para garantir que tudo correria bem, estava ali o brigadista florestal Akuykuma Mehinako. A atenção estava voltada para evitar que as labaredas não se espalhassem e que as brasas fossem apagadas antes de a pescaria começar.

"O clima mudou muito e é arriscado para a gente hoje usar o fogo. Antes não era assim, a gente ia embora e deixava o fogo lá e apagava sozinho. Agora não pode mais", afirma Akuykuma.

O fogo é um elemento muito presente nos rituais do Quarup, pois também é usado para limpar os acampamentos que são levantados no entorno da aldeia, onde os convidados montam suas redes, e também para espantar o frio que se faz presente no mês de agosto, que marca o início do período da seca no Xingu e também das cerimônias fúnebres dos mortos ilustres.

Se durante o dia as temperaturas são elevadas e o calor se mistura com o poeirão que os ventos levantam do chão da aldeia, durante a madrugada os termômetros podem alcançar temperaturas abaixo dos dez graus Celsius.

"Os convidados ficam nos acampamentos e, se eles deixarem o fogo lá, a gente tem que cuidar e apagar", afirma o brigadista. A crise climática tem obrigado os indígenas do Xingu a fazerem adaptações não só no dia a dia, mas também em suas cerimônias ancestrais.

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Durante a cerimônia fúnebre, é necessário uma quantidade incontável de centenas de litros de mingau de pequi, que, além de complementar a alimentação dos convidados, também é oferecido aos espíritos durante o ritual da pescaria, assim como a pimenta, para que eles possam liberar o peixe e para que haja fartura. "Tem todo um procedimento a ser seguido para o peixe não fugir", diz Assalu Mehinako, filho de Iamony.

O pequi faz parte da alimentação tradicional dos povos indígenas do Xingu e a época de colheita é uma verdadeira festa nas aldeias. "Quando não tem peixe ou mingau, o convidado fica bravo, por isso que a gente tem que cuidar muito das pessoas que estão vindo e oferecer muita comida pra eles."

Acontece que, para ter mingau de pequi suficiente na época do Quarup, o fruto é colhido com bastante antecedência e precisa ser armazenado corretamente durante meses para que não apodreça até o momento do preparo da bebida. Segundo Ataruti, quilos e quilos de pequi são guardados embaixo d'água — no caso da aldeia onde ela mora, costumava ser nesse rio com água limpa e temperatura amena que praticamente secou desde que as estradas que ligam as fazendas às cidades foram abertas.

"A gente tem que colocar o pequi dentro do rio bem direitinho, bem organizadinho, porque, se o sol ficar muito quente, vai estragar. Fica um ano guardado dentro do rio para o Quarup. E antes a gente guardava aqui, mas como não tem mais rio, a gente teve que mudar de lugar", diz Ataruti.

"Esse rio começou a secar no dia que abriram a estrada, aí nunca mais voltou. Na época de chuva até ficou um pouco cheio e tentou voltar a ser um rio, mas chegou na época da seca e ele secou mais. Em 2022 o rio não voltou mais, nem um pouco, nadinha de água."

(Por Maria Fernanda Ribeiro)

Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.

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