Julián Fuks: 20 anos em 2 semanas. E o país agora clama por justiça

Se alguém, por qualquer razão, não pôde acompanhar os últimos vinte anos da história do país, tem agora a chance de observar estas duas últimas semanas para tudo compreender. Neste início de 2023, vivemos uma versão tremendamente condensada e expressiva da história recente: do ímpeto de emancipação à reação destrutiva, do anseio por diversidade e justiça à desforra colérica, de um desejo nascente de beleza à insistência na feiura e na sandice. Em chave metonímica e metafórica, e no entanto real demais, vimos o país oscilar entre sua quimera e seu retrocesso torpíssimo.

Era viva ainda a comoção pelo dia primeiro, pela passagem de faixa mais fascinante que já vimos, pelo momento em que uma catadora, um cacique, uma criança, um metalúrgico, um professor, uma cozinheira, um artesão, constituíram um presidente. Era viva ainda a comoção pelo convite a alguns ministros atípicos em nossa trajetória política, ministros vibrantes como Sonia Guajajara, Anielle Franco e Silvio Almeida, enérgicos em suas palavras a um só tempo utópicas e realistas. Era viva ainda a comoção com a ideia renovada de um país que se empenhasse na dissolução de suas mazelas, de sua desigualdade renitente, sua opressão, sua miséria.

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Era viva ainda a comoção com esse momento quando o despautério tomou de assalto o poder, espalhou-se por todos os seus edifícios e tudo corrompeu, tudo destruiu. Contrapôs a qualquer ideia razoável sua máxima estultice, associada sempre a sua truculência, sua inépcia, seu delírio, sua desfaçatez. O que há de mais estúpido no país compareceu no dia 8 de janeiro à tentativa de golpe em Brasília, e foi acolhido de braços abertos pelos oportunistas, mas sem chegar a surpreender ninguém. Não era mais que uma enfática expressão do que foi o bolsonarismo no poder, em todo seu desvario e violência.

E, diante de tal repetição, de tal fixação corrosiva, pouco nos resta senão aderir ao esforço comum para que as palavras nos devolvam a calma e a lucidez. Pouco nos resta senão apelar para que algo mude, para que a história se canse por fim de reencenar a si mesma, ao infinito num país que se condena à paralisia. E porque o país nos condena a reiterar o óbvio, e nos condena a empregar as palavras em nome do protesto e não da beleza, faço coro ao que tantos já disseram: não pode mais haver desmemória, não se pode mais adiar a justiça, não pode haver anistia a crimes tão graves e sucessivos — os desta semana e os dos últimos anos.

Não cabe uma condenação sumária e precipitada, é claro. Cabe sim a investigação minuciosa de cada uma das maneiras em que o bolsonarismo lesou o país, de cada um dos acintes perpetrados pelo pior presidente que já tivemos. Há de ser, como na Argentina em 1985, nos dizeres do promotor que acusou o ditador Jorge Videla, "uma descida a zonas tenebrosas da alma humana, onde a miséria, a abjeção e o horror registram profundidades difíceis de imaginar antes e de compreender depois". Há de ser uma devassa na monstruosidade, um exame desagradável das muitas faces que a violência assume, mas um exame absolutamente necessário, pois "sua própria atrocidade torna monstruosa a mera hipótese da impunidade."

Por tempo demais nossa aparente tranquilidade se baseou numa falsa conciliação nacional, na ideia de que um futuro pacífico dependeria da nossa ignorância, da nossa apatia, do nosso desinteresse. Agora não. Agora, voltando às palavras do promotor argentino, tão facilmente aplicáveis ao caso brasileiro, "nos cabe a responsabilidade de fundar uma paz baseada não no esquecimento, e sim na memória, não na violência, e sim na justiça. Esta é a nossa oportunidade, e talvez seja a última. Senhores juízes: nunca mais."

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