Sobre um terremoto distante, e a comoção apressada que nos faz sentir

Ao pai que segurava a mão de sua filha morta, apenas a mão visível sob o teto que colapsara, uma ponta do lençol rosa escapando do colchão esmagado, os dedos frouxos tenuemente estendidos como se ainda desejassem o toque. A esse pai que aguardava a chegada do resgate na remota e sonora Kahramanmaras, os ombros encolhidos dentro do casaco pesado demais, o olhar indiferente à câmera ou ofuscado pelo clarão da morte. A esse pai que não me encarou por dias na página que deixei aberta por descaso, a esse pai que nada se importou se eu conheceria ou não sua história trágica, a esse pai que não me ouve, peço perdão. Queria lhe dedicar mais do que esta comoção apressada, mais do que este arremedo de compaixão.

À senhora que gritava por ajuda com voz chorosa e enfática, e avançava entre os destroços de mais um prédio arruinado pelo terremoto, já sem forças para erguer uma única pedra, um ínfimo tijolo, um naco de reboco, nada. À senhora que empenhava todos os seus esforços em implorar, e rezava aos céus e rogava aos homens sem nem erguer os olhos, à senhora que preferia investir sua dor na ineficácia das palavras. A essa senhora que jamais me ouvirá, queria dizer que ouço os seus gritos, e que creio que os decifro, mesmo que não entenda uma única frase de sua remota e sonora língua. Mesmo que a televisão não cale quando termina a sua notícia, eu sim me calo, eu sim continuo a ouvir sua súplica desesperada, e então mudo de canal.

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Ao bombeiro que se pôs a chorar quando tirou dos escombros um corpo a mais, um corpo ainda desperto entre tantos outros já inanimados e esvaídos, ao bombeiro que chorou quando encontrou a vida e não apenas a desolação massiva, a esse bombeiro que nem sabe que existo, conto que o acompanhei numa lágrima — como quem o acompanhasse num trago, depois de um único e triste brinde. E à criança que ele resgatou, à criança cujo rosto impassível me lembrou por qualquer razão o rosto da minha filha, à criança atônita e emudecida ante o mundo destruído, a essa criança digo que queria ser o pai que a abraça e que encobre a ruína. Mas que não posso, me desculpe, menina, pois minha própria filha me convoca com seu choro cotidiano e hoje meu amparo é a ela que dedico.

Um dia será preciso falar sobre toda essa comoção acelerada, parente mais severa da alegria efêmera, da zombaria furtiva, da indignação perecível. Um dia será preciso falar sobre essas emoções passageiras que têm constituído os nossos dias, essa variação desenfreada entre afetos díspares, do riso debochado ao choro desabrido, do escárnio ao enternecimento em poucos minutos, em poucos cliques. Um dia será preciso falar sobre tudo isso, mas hoje não dá, hoje não posso, porque tenho pressa e o mundo me convoca a ver mais, a me comover mais, a me apiedar mais, a me alegrar mais, a me indignar mais, e a tudo esquecer quando o perco de vista.

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