As peles e imagens dos yanomamis: uma visão dilacerante do genocídio

Porque era noite, e porque naquela terra a noite tinha algo de sagrado, algo de incompreendido ou incomunicado, não nos permitiram passar. Viajávamos fazia horas, estávamos exaustos, tínhamos uma pressa qualquer para chegar a Roraima, mas não havia ninguém ali para ouvir argumento nenhum e só o que restava era esperar. À nossa frente, barrando a passagem dos carros, abria-se uma reserva indígena, estendia-se por centenas de quilômetros um território que ignorávamos, um espaço conformado por outras leis, outras lógicas, outras histórias, outras verdades. Não nos cabia indignação nenhuma, só o que cabia era guardar silêncio e respeitar. Saímos do carro, nos deitamos no asfalto, e tratamos de descansar sob aquele céu tão largo.

Por alguma razão, esse momento longínquo me retornou à memória ao conhecer a dimensão da tragédia de um povo, ao ganhar consciência dos horrores que têm assolado os yanomamis, cujo nome deveria significar algo como seres humanos. Com algum pudor me aproximo das imagens cruas, brutas, assustadoras que se espalham por toda parte. Não quero ver crianças frágeis de corpos esquálidos, costelas aparentes, peles esgarçadas, não quero ter de procurar adjetivos que qualifiquem o inqualificável. Mais cômodo seria deitar como naquela noite sobre o asfalto áspero, ainda alheio ao conhecimento e à indignação, mais cômodo seria ser barrado da observação do desastre provocado por nós, pelos seres humanos.

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Me afasto das imagens e tento outra abordagem, tento algum entendimento a partir das palavras, me ponho a ler o estonteante livro de Davi Kopenawa sobre sua cosmogonia, sobre a cosmogonia dos yanomamis. "Eu, um Yanomani, dou a vocês, os brancos, esta pele de imagem que é minha", é o que ele dita ao antropólogo Bruce Albert, o responsável por "desenhar e fixar suas palavras em peles de papel", como Kopenawa quer. É assim que ele designa a escrita dos brancos, peles de imagens são os livros, mas em mim reverberam aquilo que eu via a cada fotografia, peles de imagens tão terríveis, imagens de peles cuja mera contemplação era já dilacerante.

Para os yanomamis, há sempre algo de impróprio nas fotografias, como se essa fosse mais uma das formas em que seu mundo é invadido. Na atual crise elas desempenham uma função importante, claro, são o ponto de partida de uma indignação vasta, de uma inaceitação que convoca à ação em muitos níveis. Mas basta ler algumas páginas de Kopenawa para entender as tensões que esse uso suscita, já que em seu complexo glossário pele e imagem são duas palavras decisivas que talvez se pudessem traduzir também como corpo e alma. Quando uma criança está mal, quando é "devorada pelos seres maléficos da doença", sua imagem é levada pelos espíritos em busca de cura, enquanto "a pele, muito enfraquecida, queda-se estendida na praça da casa, na floresta."

Contra o registro invasivo das imagens, a confiança maior parece recair sobre a perpetuação das palavras. A princípio não através da escrita, já que se trata de uma cultura oral feita de palavras antigas e fartas, palavras que eles não têm de desenhar e que nem por isso irão desaparecer, confia Kopenawa. Mas ele resolveu registrar por escrito a vida e o pensamento dos yanomamis para que fossem ouvidos longe da floresta, no mundo dos brancos. "Desse modo, suas ideias a nosso respeito deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam a vontade de nos destruir. Se isso ocorrer, os nossos não mais morrerão em silêncio, ignorados por todos, como jabutis escondidos no chão da floresta."

Nomear às vezes chega a ser uma forma de invadir, mas pode ser também uma forma precisa de definir, e assim de compreender. Os brancos, Kopenawa diz, entram na floresta distribuindo nomes a esmo, e foi assim que ele se tornou Davi. Na tradição yanomami, as crianças não são nomeadas tão aleatoriamente, recebendo em vez disso nomes que designam alguma peculiaridade sua, algum acontecimento, alguma ação marcante de sua vida. Uma é Rããsi, a doentia, porque fica enferma muitas vezes, outro é Mioti, o dorminhoco, outro Mamoki prei, o de olhos grandes, outro Nakitao, o que fala alto.

Temos muitas coisas a aprender na cultura yanomami, se não nos mantemos aquém de suas fronteiras, apenas a intuir a sua existência. Talvez a primeira delas seja essa maneira tão expressiva de nomear as pessoas a partir de seus feitos. Com as palavras já não nos cabe o pudor que as imagens ainda nos exigem. Se vemos um povo inteiro vitimado pelo descaso, pela inépcia, pela negligência, ou mais, destruído por um projeto corrosivo de poder, se vemos em imagens chocantes o horror a se abater sobre tais seres humanos, absolutamente mais nada nos impede de atribuir ao responsável por tudo isso o seu nome verdadeiro. É o genocida, aquele que perpetra ou ordena a dizimação de um povo.

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