Adeus a Milan Kundera, artífice de novas liberdades amorosas e políticas

morreu um grande homem, e nessa ocasião prevalece o costume de lhe dedicar algumas frases elogiosas. Kundera foi um escritor autêntico, coerente, encantador, capaz de deixar marcas perenes em seus leitores, sobretudo quando o leem com o espírito ainda jovem. Kundera inaugurou em toda uma geração o gosto pela profundidade, e de quebra ainda soube incutir em muitos o gozo da liberdade, tanto política quanto amorosa.

Sabia dotar o complexo de uma exata simplicidade, sabia buscar no simples uma oculta complexidade: eis o paradoxo com que o autor tcheco nos consome. O peso e a leveza, a luz e a obscuridade, a liberdade e o compromisso, a morte e a imortalidade, é nessas e em outras polaridades aparentes que Kundera mergulha seus personagens, sem que possam sair delas com qualquer resposta fácil. A única certeza que trazem é a "sabedoria da incerteza", aquilo que para ele constitui o aporte maior do romance ao mundo moderno, tão devoto de ideias fechadas. Ali naquele espaço ninguém nunca tem razão, apenas se confrontam impressões e olhares, e assim a vida se multiplica em possibilidades. "Por definição", Kundera dirá, "o romance é a arte irônica: sua 'verdade' é oculta, não pronunciada, não pronunciável."

É com a relatividade essencial das coisas humanas que o autor nos depara em cada uma de suas obras. Flagramos os seus personagens no instante decisivo de sua trajetória, o instante exato que lhes garante a existência literária. Tomas contemplando uma parede vazia sem saber se ama ou desama, se cede ao compromisso amoroso ou guarda sua tão prezada liberdade, um conflito que se desdobrará com riqueza em toda "A insustentável leveza do ser". A senhora Agnes acenando para um rapaz num gesto de pura juventude e graça, um gesto que suspende o tempo e assim antecipa, paradoxalmente, uma reflexão sobre a morte, em "A imortalidade". Pelo dilema moral nos aproximamos dessas pessoas, partilhamos sua angústia, nos irmanamos.

Talvez passasse por algum dilema também o autor que contemplamos. Bom leitor que sempre foi, Kundera devia se dar conta de quanto se privava de inovações formais, quanto preferia dedicar sua atenção a argumentos e tramas. A composição inteligente de suas obras, e o exercício fluido da reflexão existencial, supriram a carência de uma novidade formal, e os ganhos dessa decisão não foram poucos. Já sem o ruído e o assombro que marcaram o gênero por tantas décadas anteriores, Kundera foi capaz de retomar o romance em sua tradição de pedagogia dos afetos, mas agora para constituir afetos novos.

Tomas, Tereza, Sabina: nesse triângulo voltam a se encenar velhos dramas amorosos, mas agora adequados aos novos anseios libertários. Vemos desfilar pelas páginas tanto suas angústias quanto seus ideais, tanto sua justiça quanto sua impiedade, na construção legítima e falível de relações novas, menos marcadas pelas falsas certezas do passado, pelos dogmas do casamento e da fidelidade. Professor Avenarius: nesse personagem menos célebre do que deveria ser, propõe-se uma nova maneira de agir politicamente, a partir de uma intervenção audaz e poética sobre o estado rígido das coisas presentes, a denunciar o tédio e o conformismo em que vivemos.

Se acertam ou se erram tais personagens não importa, embora isso renda conversas das mais envolventes. Se Kundera chega a pertencer a um cânone contemporâneo, estando a ele reservada a imortalidade, talvez seja também uma questão sem importância. O caso é que ele soube cumprir o seu próprio desígnio de "descobrir o que somente um romance pode descobrir", sendo essa a "única razão de ser de um romance". E soube, como poucos, colocar em ação nos livros seu conceito de história, "impessoal, ingovernável, incalculável, incompreensível", história de que ninguém escapa, história em que estamos todos contidos.

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