Metonímia e metáfora são a força mais poderosa em ação na linguagem

Na última coluna falei dos literalistas e sua condenação –inútil, mas semeadora de confusão na cabeça dos incautos– do uso consagrado de "através" com o sentido de "por meio". Esse é só um dos erros cometidos pelos podólatras da letra, e todos são provocados pelo ódio à linguagem figurada.

Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha

Talvez por culpa de velhas cartilhas escolares cheias de bolor, muita gente acha que usar metáfora e metonímia é chamar as coisas por nomes deslocados, "poéticos", trocando as bolas só por boniteza.

No caso da metonímia, dizemos que fulano fez "quarenta primaveras", por exemplo. No da metáfora, podemos chamar o deserto de oceano, o oceano de lençol e o lençol de jardim das delícias. Mas quem fala assim na vida real, não é?

Se fosse só isso, o poder de metáforas e metonímias não seria pequeno, mas eu compreenderia melhor a luta dos literalistas e seus manuais de estilo por uma linguagem direta, sóbria, purgada daquilo que mentes exatas veem como "frescura".

Ocorre que não é só isso. Estamos falando da força mais poderosa em ação na linguagem, de ponta a ponta, do começo ao fim, tão prolífica e onipresente que na maioria dos casos nem se deixa ver.

Tome-se a insuspeita palavra "regra", de credenciais exatíssimas. Muito apreciada pelos literalistas em sua cruzada contra a linguagem figurada, é figurada em si mesma. Trata-se de uma das descendentes do latim "regula", que na origem queria dizer "régua", ripa usada para traçar linhas retas.

Mas o que um pedaço de pau tem a ver com uma regra? Literalmente, nada. Uma metonímia deu início ao processo de expansão de sentido. Nesta, como se sabe, chamamos uma coisa pelo nome de outra, mas há entre elas um elo concreto, uma vizinhança funcional. De uma régua se tira por exemplo uma linha –de conduta.

Mas o desdobramento dos sentidos raramente se contenta com pouco. Quando a carga semântica de regra se avoluma a ponto de fazer a palavra significar lei, norma, preceito, a tira de madeira já está tão enterrada na história que acreditamos nos ater ao pé da letra.

Vale observar que o próprio pé da letra ao qual se agarram os podólatras é figurado à beça. Letra é metonímia de palavra e tem pé metafórico. Expansões semânticas como essa são mato na história das línguas. Lutar contra elas não passa de uma tentativa de aprisionar vento em rede –repararam nas metáforas?

Talvez o buraco (mais uma!) fique ainda mais embaixo. No clássico "Metáforas da Vida Cotidiana" (Educ), de 1980, os linguistas George Lakoff e Mark Johnson defendem a tese de que a metáfora transborda da linguagem para moldar nossos pensamentos e condutas sociais.

"Com base em primeiro lugar em evidências linguísticas", escrevem, "descobrimos que a maior parte de nosso sistema conceitual tem natureza metafórica." Talvez nem precisassem acrescentar que esse sistema, esse modo de compreender o mundo, determina nossas ações.

O primeiro exemplo que Lakoff e Johnson fornecem de conceito de base metafórica tem relevância especial em nossos tempos de redes sociais: "Debate é guerra". Isso se evidenciaria em frases como "Ele atacou os pontos fracos da minha argumentação" e "O que você diz é indefensável", entre outras igualmente bélicas.

Acreditando que debate é guerra, ao entrar nele nos comportamos como guerreiros. A metáfora costuma vencer. Em geral, o melhor que podemos fazer é tomar consciência disso e negociar com ela uma paz digna.

O que você está lendo é [Metonímia e metáfora são a força mais poderosa em ação na linguagem].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

Wonderful comments

    Login You can publish only after logging in...