Isenção do IR deve ser informação pública, como salário de servidor, diz autor de novo livro sobre desigualdade

Se qualquer um pode ver o salário de cada servidor público ou os valores recebidos por beneficiários do Bolsa Família —ambos nominalmente— no Portal da Transparência do governo federal, por que não é possível ver o quanto alguém está sendo isentado de pagar impostos, ou pelo menos saber a alíquota efetiva que um grande empresário ou um artista está pagando?

A provocação é do economista Pedro Fernando Nery, em seu novo livro "Extremos: Um mapa para entender as desigualdades no Brasil", que chega às livrarias nesta terça-feira (16) pela Zahar/Companhia das Letras.

No livro, Nery visita oito destinos do Brasil que marcam extremos de desigualdade e discute reformas possíveis para mudar esse quadro.

"Por que o sigilo fiscal de alguém muito rico é tão mais valioso do que a privacidade de uma dona de casa na periferia de São Paulo, por exemplo?", questiona Nery, em entrevista à BBC News Brasil.

"Uma parte fundamental dessa questão da tributação da renda é conseguirmos aplicar os princípios da Lei de Acesso à Informação, que já vale para a despesa [direta do governo], também para a despesa indireta. Quer dizer, para todas as isenções e benefícios [tributários]."

Para o economista, ampliar o acesso à informação seria uma forma de reduzir resistências para a realização de reformas difíceis —como a aguardada reforma do Imposto de Renda (IR), que deve aumentar a taxação dos mais ricos, tornando o tributo mais progressivo (ou seja, fazendo quem tem mais pagar mais).

Em março, o governo adiou o envio da proposta de reforma do IR ao Congresso, gerando o temor de que ela possa ser deixada de lado.

Consultor legislativo do Senado de carreira, e atualmente diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República, trabalhando na equipe de Geraldo Alckmin, Nery considera o adiamento justificável, devido ao ano de eleições municipais e à necessidade de regulamentação da reforma tributária do consumo.

"Não podemos correr o risco de ter uma reforma da renda como aquela que foi discutida no Congresso no governo anterior, que estava, segundo muitos especialistas, saindo pior do que entrou", diz, citando a proposta de reforma apresentada pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes, que não prosperou.

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Num momento em que o governo federal cancela eventos para rememorar os 60 anos do golpe de 1964 para não desagradar os militares, Nery defende uma outra reforma polêmica: a da Previdência das Forças Armadas.

"Gastamos com pensão de inatividade militar algo como R$ 50 bilhões por ano", diz.

"Se olharmos para o orçamento pré-pandemia do Bolsa Família, que estava ao redor de R$ 30 bilhões, vemos que gastávamos quase o dobro com proteção à renda das famílias militares, do que com proteção à renda das famílias pobres", argumenta.

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Entusiasta da expansão do Bolsa Família —cujo orçamento chegou a inéditos R$ 170 bilhões em 2024—, Nery acredita que é preciso agora dar o próximo passo.

Ele defende a criação de um Benefício Universal Infantil, para todas as crianças do país, sejam elas ricas ou pobres.

O modelo tem sido tema de estudos diversos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) nos últimos anos, e é adotado em países que são exemplo de igualitarismo, como a Finlândia.

"A universalização faz sentido em um país como o Brasil, em que os mais ricos já recebem um benefício do governo, que é o benefício por dedução do Imposto de Renda", afirma.

"Estamos falando de um modelo em que os mais ricos não receberiam mais do que já recebem, mas grupos intermediários e pobres receberiam mais do que hoje."

Economista liberal de formação —doutrina que rejeita o intervencionismo do Estado na economia—, mas atualmente parte de um governo de esquerda, Nery acredita que a desigualdade é um tema que pode ajudar a criar consensos num país polarizado.

"No Brasil, temos uma tradição de ter um apoio multipartidário para esses temas", afirma.

"Veja, por exemplo, na ampliação do Bolsa Família ou no Auxílio Emergencial, que foram temas consensuais no Congresso, mesmo com toda a polarização."

Ele, no entanto, evita se posicionar no espectro político.

"Eu me acostumei tanto a trabalhar para esquerda e para a direita no Senado, e a ser xingado pelos dois lados quando eu era colunista no Estadão, que não me preocupo tanto com isso", desconversa.

"Dependendo do que eu escrevia no jornal, me chamavam de 'liberal planilheiro' ou de 'comunista maconheiro'. Então o que me motiva é olhar a ciência, a realidade, a experiência internacional e não pensar tanto em ideologia. Até porque, às vezes, isso divide mais do que conquista."

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

💥️No seu livro, você conduz o leitor por oito locais do Brasil que marcam extremos de desigualdade e descreve-os como "lugares que tecnocratas como eu somente imaginam a partir de dados do IBGE". Qual desses oito locais que você visitou te impressionou mais e por quê?
O que mais me impressionou foi a realidade de Ipixuna [município no sudoeste do Amazonas, às margens do rio Juruá e ao sul do Vale do Javari].

É o lugar menos desenvolvido do Brasil, mas ele impressiona mesmo pelo isolamento geográfico. É um lugar de muito difícil acesso.

Ao mesmo tempo, temos falado tanto de mudança climática, de conservação, e acredito que ainda não amadurecemos o debate sobre trazer soluções viáveis para essas populações que moram no interior da Amazônia.

Algo que discuto no livro é a possibilidade de ampliar transferências de renda, que é algo que me parece mais factível do que tentar desenvolver alguma atividade econômica que seja compatível com a preservação da floresta, diante dessa escassez de infraestrutura.

Estamos falando de cidades que não estão ligadas por terra a nenhum outro lugar. Que só podem ser acessadas por rio ou pelo céu. E com dificuldades específicas para esse acesso em cada época do ano.

Então, penso que precisamos olhar com mais carinho e com mais realismo para essa realidade da pobreza na Amazônia.

💥️No livro, você enfatiza a solução da transferência de renda, do tipo Bolsa Floresta [atualmente "Guardiões da Floresta", programa do governo do Amazonas que paga R$ 100 por família para 15 mil famílias que moram em unidades de conservação]. Como compatibilizar isso com o desejo das pessoas que vivem na região amazônica de trabalhar?
Penso que a transferência de renda, além de aliviar a pobreza, fomenta o consumo e o próprio mercado local.

Mas acredito que tem talvez uma bola quicando aí, uma solução possível, que é investirmos mais em economia de serviços, que tem uma pegada ambiental baixa e não depende tanto de infraestrutura, de escoamento, quanto a indústria, o agro e a mineração.

Então acredito que essas novidades que estão surgindo em relação à telecomunicação, à internet, a Starlink [serviço de internet por satélite oferecido por empresa do bilionário Elon Musk], são soluções que temos que considerar.

Nas grandes cidades, o que queremos para os nossos filhos é que eles sejam médicos ou outras profissões ligadas ao setor de serviços.

Então acredito que podemos perder o que a gente chama no jargão de "fetiche da mercadoria" e pensar mais em economia de serviços como uma solução que compatibilize preservação ambiental e o desejo por inclusão produtiva que você mencionou.

💥️Ao longo da sua jornada, você apresenta uma série de reformas que podem tornar o Brasil mais igualitário, sendo a primeira delas a reforma do Imposto de Renda, que nos cálculos do Ipea pode gerar ganhos de até R$ 120 bilhões por ano. No entanto, em março, o governo federal decidiu adiar o envio dessa reforma ao Congresso. Como você avalia esse adiamento?
Acredito que o presidente Lula colocou de uma forma inequívoca, ainda nas eleições, o imperativo de colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda.

Isso foi feito já no primeiro ano de governo, com a restrição a Juros sobre Capital Próprio [modalidade de distribuição de lucros que permitia às empresas pagar menos impostos], a taxação dos fundos fechados e offshore e a mudança de regras para letras de crédito.

Mas, de fato, ainda precisamos de uma reforma mais ampla da tributação da renda.

Por esse ser um ano de eleição municipal e ainda termos como prioridade a regulamentação da reforma tributária do consumo, através de projetos de lei complementar, me parece que o adiamento faz sentido.

Porque não podemos correr o risco de ter uma reforma da renda como aquela que foi discutida no Congresso no governo anterior, que estava, segundo muitos especialistas, saindo pior do que entrou.

Então acredito que, para chegar no Congresso com uma proposta mais madura, e também não tumultuar a regulamentação da reforma tributária do consumo, faz sentido o adiamento.

Mas acredito que há um compromisso muito claro do presidente, que fica evidente nesse slogan "pobre no Orçamento, rico no Imposto de Renda".

O que você está lendo é [Isenção do IR deve ser informação pública, como salário de servidor, diz autor de novo livro sobre desigualdade].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

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