Canteiros

A tristeza é organizada; o desespero não. Acordo e durmo pensando nessa frase. Com tristeza é possível levar filho à escola, fazer lista de supermercado, trabalhar até o corpo implorar por arrego. Com os óculos para longe, observo com dificuldade a agenda com as entregas de trabalho: em amarelo, urgente; em azul, resolver em três dias; sem marca-texto é para quando der. Dezenas de mãos, fechadas em socos, me sacodem o peito. Tenho medo de achar graça em algo e abrir demais a boca.

Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres

Minha filha entra no escritório trazendo um minivasinho de argila que fez, "para você colocar o que quiser dentro". Não há portas trancadas desde que ela nasceu, e vê-la entrando com seu barulhinho de respiração excitada é uma espécie de redemoinho doce que me mantém de pé. Entrego tudo atrasado, mas não abro mão desses pequenos choques diários em meu coração.

O estabilizador de humor faz com que eu me sinta, às vezes, como se estivesse escondida dentro de um totem esculpido às pressas e vendido em loja. Em outros momentos, penso que estou coberta pelo manto de uma mulher altíssima, com ombros fortes e costas largas que jamais se encurvam. E ela me diz: isso sim, isso não, isso nem pensar, não exagere, menos, agora sinta com coragem, sem correr, deite-se, durma, coma, respire. É bom (e diferente de mim), mas não sei se aguento por muito tempo.

Minha filha queria demais um colar com pingente de unicórnio. Me perturbou por semanas. Encontrei na internet e comprei. Quando chegou, o unicórnio era transparente, delicado (vagabundo?), e eu percebi que quebraria em alguns dias. Ela percebeu também. E nossa vida ficou suspensa pelo choro agudo que romperia a qualquer momento. Desde então eu sonho que encontro o pingente intacto embaixo da minha cama, quebrado, sem cabeça, sem as pernas, eu colo, conserto, ele desaparece, vira pó, quebra, está intacto, é de ferro, é de chumbo, sem cabeça, sem as pernas, é dela, é meu, sou eu.

Perguntam se estou bem. Respondo que já estive pior. Respondo que muito mal não estou. Respondo que vai passar. Respondo que o pior já foi. Respondo que tenho medo de ficar pior. Respondo que quem se separa de um casamento de dez anos com filho dificilmente sofre pelo que vem depois. Respondo: "Ué, por quê?". Só não respondo a verdade.

Um amigo me diz que preciso chorar. E me manda a música "Canteiros", do Fagner. Uma versão ao vivo, em um teatro, com orquestra. Espero Rita dormir, apago a luz do escritório. Deito na cama, coloco meus fones. A tristeza é organizada; o desespero, não. Mas à meia-noite, quando finalmente posso, penso que vou morrer, enlouquecer, sangrar, ficar sem ar, esmurro o peito, engasgo, entupo, abafo o monstro rouco que urra dos meus pés até os dentes, não suporto o casaco que uso, não suporto o elástico das meias, não suporto viver sem você. Como eu vou viver sem você. Como eu vou viver sem você. Não tem agenda, não tem idade, não tem lista, não tem esconderijo, não tem farmácia, não tem cola, não tem manto, não tem redemoinho, não tem nada para colocar dentro do minivasinho. Ainda se ama tanto depois de tudo, e eu te amo desesperadamente.

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