De quando a mentira se vestiu de verdade

- Eu vô morrê! Eu vô morrê!
- Não diga isso filho - diz a mãe
- Brinque de extinto mais tarde eu disse

Gabriel corria pelo quintal dando pirueta e dizendo a frase acima, que ele com certeza deve ter assistido em algum desenho infantil, TikTok, ou dentro de si mesmo. Ele ainda não vê a morte do jeito que nós a vemos, ele ainda é parte integrante ou total da natureza e pode então se agrupar a ela. Devaneios a parte, a criança estava com febre e a mãe a levaria ao médico, ele fica elétrico quando tem febre, eu não sou assim, mas ele é.

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A Juju, irmã de Biel, ficou comigo, tivemos uma noite atípica, comemos misto quente sem líquido pra acompanhar e fomos assistir TV acampadas no chão da sala, enquanto eu ouvia mensagens de alguém que tentava me comover com uma história triste, sem sucesso. Eu só queria saber dela, o que eu faria pra usar três cacaus que eu tenho pra transformá-los em chocolate, só isso. E só pedi esta informação porque temos dívidas passadas que nem são de outra vida, são de 2023 pra antes. Na TV um doc diz que houve um tempo e que se dizia: "Mate o índio, salve o homem", nesta época de colonização na América do Norte todas as crianças indígenas foram tiradas de sua comunidade e foram obrigadas a viver em abrigos, eu sei o que é abrigo, eu sei. Anos depois, setecentas cabeças de criança foram encontradas enterradas num destes locais onde funcionava essa tal casa cristã, qual parte destas crianças foi salva? Não quero levar seu domingo a esta barbárie, não hoje, se tiver um pouco de consciência nem será preciso.

Mãe me enviou mensagem às sete horas da manhã, estava no aeroporto, segundo ela, esperando um trem que sairia às 11h. Entendi aí a mentirinha e disse:
- Onde vais Maria tão cedo e tão viajada no WhatsApp? Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma.
Ela não respondeu, mãe nunca responde, ela não gosta de dizer onde vai, também não gosta quando não perguntamos aonde ela estava, mentiras que a pessoa gosta de fazer uso e pensa que a gente não percebe, cabe a cada um saber de si entre o que ele vai deixar em sua bagagem materna, reproduzi-la ou não toda vez que desembarcar nalguma estação. A vida tem muitas estações, hoje, domingo dia 30, é uma delas, para entender os acontecimentos à nossa volta ou ficar na ignorância, ficar na ignorância é inclusive a forma mais tranquila de viver, Gabriel ao dizer que morreria hoje contou uma mentirinha. Eu e Juju víamos mentirinhas contadas na TV enquanto esperávamos o sono chegar, a mãe, a vida, o mundo, cada um a seu tempo faz suas concessões e segue com elas e paga por elas até o dia que precisamos confrontar a verdade com o espelho que nunca é um caminho fácil. Por que estou escrevendo sobre mentiras e verdades? Não sei, me deu vontade, o que será que tem que ver uma coisa com a outra?

Depois de amanhã será aqui no Brasil o Dia dos Mortos, no passado, pra mim, era um dia horrível porque tudo circulava em torno do tema, todo programa de rádio tocava a música Churrasquinho de Mãe. Um garoto vinha vindo da escola, quando de longe avistava a casa que ele morava com a mãe ardendo em chamas, os vizinhos sequer tentaram salvá-la, como a moça que filmou o homem negro sendo morto por seguranças naquele mercado famoso, lembra? No mesmo dia ainda a gente saia em romaria pra os cemitérios, sentávamos numa campa e ali almoçávamos junto aos mortos e seus parentes. Naquela época a gente nem tinha gente nossa ali, mas íamos por solidariedade e por que ao nosso redor a maioria das pessoas iria pra lá, era um dia horrível, cheirava a sepulcro e borra de vela, e ainda na volta era preciso tirar a roupa no quintal porque a terra do cemitério era suja, então por que íamos lá?

A realidade bateu forte em mim em várias fases da minha vida onde a ignorância foi desanuviando. A primeira foi quando meu irmão faleceu, naquele ano foi horrível fazer o ritual da ida àquele lugar, a vontade de cavar aquela terra e tirar ele de lá era imensa. Ali a morte se fez verdade, a verdade de saber que não há oração capaz de trazer alguém de volta à vida. A segunda foi quando estudei enfermagem, numa aula sobre algum assunto eu ouvi que não devemos ir aos cemitérios assim a granel a passeio porque realmente é uma terra contaminada. A terceira é uma conclusão minha do porquê há muros em volta dos cemitérios, quem está fora não quer entrar, quem está dentro não pode sair, com rara exceção as pessoas que acham as tumbas um lugar seguro pra passar a noite.

Segundo meus estudos de diáspora, cemitério em algumas comunidades afro é uma calunga pequena, morada de entidades que guardam e encerram caminhos, não duvido. Sempre tenho cuidado se preciso circular no entorno de um, sempre cuido pra que não seja hora grande, abertura de portais. O mar é uma calunga grande, porque engole as pessoas, também é berço e moradia de Iemanjá, marinheiros, marujos e pescadores.

Hoje, 30 de outubro, um novo portal se abre, muitas mudanças estão em movimento pra o mundo que queremos, a descriminalização da natureza é uma delas, a relação com as plantas e animais é outra, com agricultores e produtores, com os antepassados. A relação com os mistérios da vida e do mundo, o mito da vida em autossuficiência, a realidade dos movimentos de resistência, e com os recursos. Nós, as civilizações que perderam a guerra, estamos entrando pra história com nossas verdades, sim nós temos uma. Eu sei que é difícil descrer que o vovô não disse toda verdade sobre como tem em seu nome tanta terra, e aqui e ali deixou em herança em papel passado em um cartório criado por ele e os seus inclusive. Será preciso descascar esta cana e beber esta garapa azeda em que em cada pé de cana se amarrava uma cabeça de boi. Nem cana nem gado tinha aqui, mas tinha terra e gente vivendo nela, as terras tiradas dos indígenas e passadas em regime de sesmaria pra invasores foi uma realidade, até hoje, por que será?

Depois vieram as imigrações, o próprio Ataliba, em 1970, ainda tinha essa cara transformada, O Bixiga, a Mooca, o Brás, a Liberdade, a Barra Funda, o Ataliba, São Paulo inteira era um quilombo. Um dia ainda iremos rasgar os livros cheios de mentiras que são, fazem uma epistemologia de nossas passagens, pense nisso. Mas falando de meias verdades, o Gabriel está bem, era só uma febre mesmo e a mãe foi ali em Florianópolis. E eu estou aqui pensando sobre as cores. Sim, estão voltando as cores e as flores, que cor quero eu usar?

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