Fungo extraterrestre e força do transe: escritora busca origem em livro

Na madrugada de 10 de novembro, a escritora Carola Saavedra acordou e não conseguiu mais dormir. Ela estava em casa na cidade de Colônia, na Alemanha, e despertou sozinha com a música "Baby" na cabeça. A cantora Gal Costa tinha morrido na véspera.

Mesmo longe, tem vezes que ela sente como se estivesse no Brasil: quando uma personalidade como Gal se vai, ou durante as eleições, ou quando entrevista pela internet artistas indígenas do Brasil para sua pesquisa. "Estou fisicamente em Colônia e espiritualmente no Brasil", diz a 💥️Ecoa.

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Esse deslocamento não é estranho pra ela: Carola sempre viveu em trânsito. Nasceu num avião em sobrevoo pela Cordilheira dos Andes, vindo do Chile rumo ao Brasil. Não literalmente: na verdade ela nasceu no Chile em 1973, ano do golpe militar de Pinochet, e veio para o Brasil em 1976, com quase três anos de idade.

Mas a viagem entre os dois países é sua primeira memória: ela a considera "muito simbólica" de sua vida e a utiliza como ponto de partida de seu sexto romance, "O manto da noite", lançado pela Companhia das Letras em novembro de 2022.

Literatura com saberes indígenas

Nos últimos anos, Carola tem se dedicado à pesquisa sobre arte e literatura indígena, associada à busca por sua própria origem mapuche, povo indígena do Chile, pelo lado de seu pai. Na Alemanha desde 2018, ela ministra na Universidade de Colônia uma disciplina sobre "sonhos, transe e mirações na arte e literatura indígena". A turma está lotada.

"As pessoas querem saber sobre esses assuntos, porque se dão conta que a gente precisa repensar a nossa maneira de enxergar o mundo", diz.

Esses estudos foram aplicados no novo livro, em que a autora cria "procedimentos a partir dos saberes indígenas". Um exemplo é a Cordilheira que ganha "status humano", conversando com a personagem que caminha por ela. A cadeia de montanhas se lembra dos horrores a que a América do Sul foi submetida pela colonização.

Este é um continente de mortos, diz a Cordilheira, seu tom é tranquilo, como se aquilo não lhe importasse. Guerras? Sim, muitas guerras, no início é possível escutar os gritos, depois os gritos vão silenciando, cada vez mais baixo, até que só resta um murmúrio, o corpo e no final? Com o tempo os corpos vão virando pedra, retornam a esta imensa elevação de terra que sou eu.
💥️Trecho de "O Manto da Noite", de Carola Saavedra

Essa perspectiva sobre a natureza é parte da cosmovisão dos povos indígenas. "Isso rompe com o paradigma cartesiano, com a lógica racional e ocidental. Ela traz pra obra essa voz indígena, que fala da identidade dela", comenta a escritora e colunista de 💥️Ecoa Trudruá Dorrico, autora da orelha de "O Manto da Noite".

Para ela, a própria composição da personagem que transita por vários espaços e chega a "trocar de pele" tem a ver com a ideia de uma identidade a partir da terra de origem, mesmo se movendo no mundo.

O manto - Divulgação - Divulgação Comprar livro

Outro aspecto dessa cosmovisão empregado pela escritora é privilegiar o sonho e o estado alterado de consciência: "Quase nada do que acontece [no romance] é no mundo da vigília. Para a cultura ocidental, o lugar da verdade é a vigília, quando se está com a razão funcionando. Para os povos indígenas, a verdade está no sonho, no transe", explica.

Carola quis levar o enredo do livro para esse "outro lugar", misturando diferentes tempos históricos, vivências pessoais, acontecimentos que parecem sonho (ou pesadelo), um diário que desemboca em um Rio de Janeiro - cidade onde cresceu - apocalíptico, com direito a uma invasão de fungos extraterrestres e uma releitura pós-colonial de "A Tempestade" de Shakespeare.

Parece complicado, mas o leitor é levado nessa viagem quase sem sentir, imerso na atmosfera do que ela tem chamado de "realismo onírico". Diferente do realismo fantástico que consagrou autores latino-americanos, ela explica que "não se trata de algo mágico, há uma verdade ali. Ela não é menos verdadeira do que o que a gente percebe na vigília, ela só é diferente".

Apocalíptica otimista

A busca de outras formas de olhar para o mundo - e de narrá-lo - feita por Carola ganhou força na pandemia de covid-19, quando a realidade assumiu contornos distópicos. Ela escrevia justamente um romance sobre o fim do mundo quando a incerteza e a bizarrice da realidade a obrigaram a deixá-lo de lado.

"Você se pergunta: como eu narro a realidade se aquilo que eu interpretava como realidade não é mais a realidade?", afirma.

Para a autora, o mundo que conhecia estava de fato acabando e ela se perguntava qual era a importância do seu trabalho de ficcionista naquele contexto. Para refletir sobre essa e outras questões, escreveu "O Mundo Desdobrável: Ensaios para Depois do Fim" (Relicário, 2023).

A lógica ocidental está levando a gente para um buraco. O antropoceno é isso, a mudança climática, o que a gente está vivendo politicamente. Então a gente se vê obrigado a procurar outras formas de olhar para o mundo. É urgente em todos os sentidos ouvir o que os povos originários estão dizendo, ouvir os saberes africanos, as vozes que estão à margem.
💥️Carola Saavedra, escritora

Hoje ela recuperou a confiança no poder da literatura e da ficção e se declara, risonha, uma "apocalíptica otimista". A criação literária seria uma ferramenta para surpreender e ir além do que somos capazes de imaginar agora.

"Acredito muito que a gente precisa pensar outros mundos, outros futuros ainda não pensados. E pra isso a gente precisa da ficção. É o lugar onde a gente pode fabular, mas também é onde os saberes coletivos podem vir à tona".

Uma ancestralidade no silêncio

Os silêncios em torno de sua ancestralidade foram o que a fizeram querer estudar a questão indígena e incorporá-la à sua literatura. Quando começou a ir atrás de informações sobre esse lado da família, se deparou com uma resistência inclusive de seu pai, que tem uma relação ambivalente com sua identidade.

"Se eu mostrar uma foto, meu pai é um índio sem tirar nem pôr. Mas ele por muito tempo negou isso porque o indígena no Chile é visto como pobre, ignorante. Ele não queria se identificar com isso, queria ser um engenheiro. Era muito duro, ele sofreu essa discriminação a vida toda", diz.

Carola vê sua busca não apenas como algo pessoal, mas também coletivo em um continente marcado pela colonização e o racismo, que fazem com que essa parte da família por vezes não tenha nome, não esteja em fotos, que ninguém fale a respeito.

"Acho que isso acontece também no Brasil, quando se fala principalmente da avó negra, que não se sabe nem o nome. Por isso é uma busca também nossa como país e como continente. A gente compra a ideia de que somos europeus ou miscigenados e que o indígena desapareceu e não temos nada a ver com o negro. É necessário repensar nossa identidade nacional como plurinacional".

Quais histórias foram contadas?

Quando tinha entre 16 e 17 anos, Carola pegou ao acaso um livro na biblioteca da escola, abriu e leu ali mesmo as primeiras linhas. Ela ainda se lembra da sensação corporal que aquelas palavras provocaram, mesmo sem ter entendido muito bem do que tratava o livro nem conhecer a autora. Levou-o para casa e passou a semana lendo.

"Se eu tivesse que fazer uma prova ia tirar zero, porque não tinha entendido nada, mas estava completamente tomada pelo livro e não sabia explicar por quê", lembra.

Era "A Paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector, para quem a obra deveria ser lida "apenas por pessoas de alma já formada". "Minha alma, coitada, estava muito longe disso", brinca a escritora.

Carola - Camilla Loreta/Divulgação - Camilla Loreta/Divulgação Carola - Camilla Loreta/Divulgação - Camilla Loreta/Divulgação A escritora Carola Saavedra

Durante anos, Carola acreditou que todas as histórias haviam sido contadas e que o que podia variar era a forma de contá-las. Hoje ela tem certeza de que ainda há muito a ser contado da perspectiva de mulheres - ainda mais das mulheres negras e indígenas.

Pouquíssimos romances do cânone, escritos por mulheres, têm a relação entre mãe e filha, a maternidade como foco. O parto, a menopausa, a menstruação, experiências relacionadas ao corpo da mulher foram pouco narrados. Ainda tem muito chão pela frente.

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