Plural, mas não bagunçada: a cultura brasileira pelo popular Alfredo Bosi

Conheci-o por texto. Nosso primeiro encontro foi difícil. Não o entendia muito bem. Ele escrevia de maneira labiríntica, mas interessante. Pelas paredes invisíveis e aleatórias que limitavam o tamanho de suas frases, conduzi-me por ideias sem ter a sensação de que as minhas já se haviam perdido. A estranheza foi inevitável. Era a primeira vez que lia alguém falando de algo que acreditei ter sabido a vida toda —ou que simplesmente não sabia que sabia. Alfredo Bosi, chamava-se o homem.

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Mais de uma década depois de tê-lo lido, "Plural, mas não caótico", encontrado na obra "Cultura brasileira: temas e situações", persiste como um dos poucos referenciais que carrego quando penso nas transformações que textos podem fazer na vida das pessoas. Alargam-se as ideias, expandem-se as dúvidas e restam às respostas darem cabo da angústia que é se deparar com um novo conhecimento sem se conhecer muito bem ainda.

Ao abordar o caráter caótico da cultura brasileira formada por tantas outras e, por essa razão, plural, sim, mas não bagunçada —ou seja, sem qualquer ordenação que produza sentido, Bosi escreveu uma frase de carne e osso tão real quanto os dedos que aqui digitam: "o que singulariza a cultura ‘superior’ é a possibilidade que ela tem de avaliar a si mesma; em última instância, é a sua autoconsciência".

Tratava, nesse trecho, de aspectos que a cultura erudita destacava a seu próprio respeito (a dita "cultura por excelência"), mas subvertia, o autor, a noção de "superioridade" para além dela, colocando tal grau de entendimento como modo de pensar que oscila e que pode elevar outros tipos de cultura à mais alta compreensão daquilo que representam e de quem as representa. Uma cultura que sabia que sabia.

Ao dissertar sobre a popular, ele, em nosso primeiro e difícil encontro, parece ter capturado por completo minha atenção. Nunca havia lido alguém que pensava sobre muito do que vivi cotidianamente na mais normal das formas de cultura até então por mim experienciadas. "O tempo da cultura popular é cíclico", chamou-me a atenção essa frase perdida entre os emaranhados da escrita de Bosi.

Caminhei em sua direção rememorando as quermesses de rua com batata-doce assada na fogueira feita de compensado, galhos e jornal velho. Também das sazonalidades ainda não tão distorcidas pelos problemas climáticos. Na época de chuva, era jogar bola sob toró intenso; no calor forte, banho de mangueira, piscina de caixa d’água, guerra de bexiga, a mãe feliz que as roupas secavam no varal. No frio, as faltas tantas. "O seu fundamento é o retorno de situações e atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor". De fato, muito valor.

Percebi-me, assim, atendendo ao anseio de querer compreender mais sobre o que eu começava a saber que sabia. A cultura popular com seu ritmo oscilante e contínuo, que bebia da tradição e a traía com a inovação sempre bem-vinda e que a gente não hesitava em oferecer a ela o que havia em nossa despensa —quando havia despensa, em Bosi pareceu minha novamente.

Talvez aí a autoconsciência que me fez resgatar momentos únicos de um jeito de viver o Brasil que é peculiar, mas ao mesmo tempo comum. Jeito plural e, como reforço sempre enquanto principal elemento em minhas colunas: diversificado por ser justamente uma estratégia para sobreviver àquilo que se recusa a dar liberdade e espaço ao dédalo cultural do povo a se saber centro de seu próprio universo —nunca isolado, sempre em movimento e expansão.

À época da escrita de "Plural, mas não caótico", na década de 1980, a televisão ainda era o principal canal de comunicação e massificação das culturas. Hoje penso em Bosi incluindo a cultural digital, de repente, como aquela capaz de abarcar todas as outras, de maneira particular, mas também comum. Penso e quero me perder nestes labirintos todos: os de ontem, os de hoje e os por vir. Penso num Bosi popular.

Quem sabe assim, além de plurais, mas não caóticos, também autoconscientes do próprio valor cultural que carregamos?

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