O último Natal no exílio: crônica para celebrar o fim dos tempos sinistros

Houve algo de exílio nestes últimos anos que vivemos, mesmo que daqui não tenhamos saído. O país se fez território desconhecido, ocupado por forças sinistras, e os que discordávamos acabamos alijados de tudo o que nos era mais caro, mais íntimo. Vimos os brutos destruírem sistematicamente o que alguma vez concebemos como comum, como coletivo, e a eles resistimos como pudemos, com o alento que nos restou a cada dia.

Agora que tudo isso termina, me lembrei de uma crônica que escrevi seis anos atrás, sob o título de "Natal no exílio". Nela eu falava do que tantos já sabíamos, claro, do risco extremo que se corria com o estremecimento da democracia, e com o protagonismo crescente de alguns homens obscuros. Mas falava também de outra coisa, recuperava os velhos natais de exilados argentinos no Brasil, seu espírito aberto e acolhedor, sua maneira de conjugar ternuras e utopias.

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Também por razões íntimas, e por razões festivas, achei que hoje me cabia recuperar aquele texto. Não para relembrar agruras que em breve poderão ser esquecidas, ou quase, mas para celebrar a perene união dos resistentes, para celebrar que tenhamos sobrevivido ao pior e ainda estejamos fortes, sãos, lúcidos — e ainda queiramos existir juntos num só país. Este há de ser o último Natal em que nos vemos exilados em terra própria, separados de nós mesmos, e o alívio que se espalha por toda parte é dos mais sensíveis.

Natal no exílio

Por toda a noite, a porta permanecia aberta. Tornava-se um vão indiscreto por onde entravam rostos sempre imprevistos, não os mesmos tios de outras vezes, não os mesmos primos, mas uma comunidade de seres destituídos cujos vínculos se faziam mais fortes do que a mera coincidência sanguínea. Ali culminavam longos trajetos: era o descanso de tantos desterrados argentinos, mas também de uruguaios e chilenos, de paraguaios solitários, era o abrigo de judeus e ateus em noite de outra hegemonia, era o pequeno país dos brasileiros sem família.

A cada ano ganhavam mais elementos as células avulsas que assomavam à porta, a cada ano crescia também a comunidade dos pequenos. Cada filho que nascia tornava os expatriados mais brasileiros, cada filho que nascia encerrava um périplo clandestino, encerrava um desterro — fosse ele um exílio oficial, fosse um deserto íntimo de nostalgias. Eu fui um desses filhos, fui uma das crianças a balbuciar suas primeiras palavras na barafunda de sotaques e línguas. Naquelas noites de natal não aprendia apenas a variedade das palavras, dos rostos, das biografias. Aprendia, também, algo da existência em comunidade, algo da pertinência das lutas coletivas muito além de suas consequências, algo da permanência das utopias.

Passada a meia-noite os presentes se distribuíam sem cerimônias, não havia rituais rígidos, nenhuma encenação infantil como na casa dos outros, nenhuma oração entoada em uníssono. Passada a meia-noite se dispersava a concentração, multiplicavam-se os círculos, e eu me punha a vaguear entre rodas e a espreitar conversas que pouco entendia. Alguém um dia falou de Brecht, de que a sina dos que fugiam, dos que perdiam a cidadania, não era pior do que a sina dos que ficavam. Alguém falou de democracia e liberdade, de respeito aos desígnios do povo, aos direitos invioláveis, e outro respondeu citando Gelman, como nunca esqueci: que é preciso falar apaixonado, e não da paixão, que é preciso falar claro, e não da claridade, que é preciso falar livre, e não da liberdade.

Já há algum tempo se passou a meia-noite, e eu me vejo a falar da liberdade, sem saber se de fato falo livre. Há algum tempo a porta não se abre como antes, cada célula cresceu o bastante para ganhar autonomia, para se isolar na convenção que alguém instituiu como família. Houve quem se afastasse por inércia dos dias, quem mandasse mensagens cada vez mais cordiais, cada vez menos sinceras. Houve quem se desentendesse diretamente, por falar de indignação e não indignado, ou quem já não se lembrasse de nenhum verso de Brecht ou Gelman, quem já não se lembrasse da poesia.

Quanto a mim, olho para a porta fechada e me deixo assombrar por meu deserto íntimo de nostalgias. Estamos num ano já longínquo, o ano que rompeu em mim algo da ingenuidade benquista daquelas noites, algo de seu otimismo. Há trinta anos venho procurando entender as conversas entreouvidas, quais os direitos que ninguém pode violar, os desígnios que governante algum pode romper, a magnitude da mais simples das utopias, a mais comezinha, a democracia. Esta noite não demoro muito a entender: vivo hoje o meu primeiro natal no exílio.

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